Março chega meio estranho. Já não me lembrava do azul no céu. A água não parava de cair. A bota tinha cheiro de mofo, a casa de telha molhada. A roupa não secava no varal e a ameaça chegava aos gritos, ainda que em silêncio. Em meados do mês, o grande terremoto nos alcança, remoto. Uma mancha vermelha se espalha pelo mapa. Somos um país grande, subestimamos a destruição. Assistíamos de longe os estragos, sob o sol que reaparecia. Um sofá sustentava um braço e uma mão segurava uma cerveja. Remoto controle. A distância física não tocou a alma. E as pessoas não acordaram. Muitas se perderam no sono profundo, eterno, tornaram-se estatística em um futuro livro de história. Outras, sonham acordadas e perambulam por aí. Elas tropeçam na destruição, mas não a veem. Algumas trabalham, trabalham e trabalham. A roupa branca marca o cuidado. Outras se cobrem de verde e amarelo, sem história, sem passado. E o discurso mítico, repetitivo e duradouro, tenta alcançar o afeto. Conservador por excelência, o mito bloqueia a consciência. Vive-se sem revolta. Não há risco. E o terremoto espanhol é apenas um registro em nosso livro de história empoeirado. O jornal marca a semelhança, denuncia o colapso. “Não saia de casa”, diz a velha notícia em 1918. “Não saia de casa”, implora a notícia em 2020. E estamos próximos, sentindo a relação orgânica. Somos um e somos todos, o velho e o novo em conexão, expostos ao mesmo terror. E a mancha vermelha se espalha, cresce e aproxima-se. E nós ainda estamos aqui, presos em um grande organismo. Desorganizados.
“Outras se cobrem de verde e amarelo, sem história, sem passado. E o discurso mítico, repetitivo e duradouro, tenta alcançar o afeto. Conservador por excelência, o mito bloqueia a consciência.” Eu consegui enxergar todas as cenas que você resgatou, como se assistisse um telejornal, só que de olhos fechados. Mas essas aspas, em especial, me espantaram, porque quase não acreditei que você conseguiu tratar tão poeticamente a raiva que elas me provocaram. Perfeito!
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Vc e sua leitura de generosidade! 🙏🏼❤️
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Em meio a tantos fake news e toneladas de mensagens que não cessam e invadem sem pedir licença, me deparo com tamanha capacidade artística e poética desse ser humano chamado Danielle, que com poucas palavras descreve o turbilhão vivenciado por nós… Sem palavras!
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Simplesmente perfeito!
Você conseguiu brilhantemente através de palavras retratar o sentimento de uma nação inteira.
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