Esse espaço é reservado para relatar pequenas parcelas do meu dia. Coisas que acontecem e que, de alguma forma, me fazem mergulhar na vivência da temporalidade do cotidiano. Trata-se de relatar situações inusitadas, mas de certa forma especiais, transcendentes e, ao mesmo tempo, humanas.
Diário de bordo, 19 de maio de 2019 – Em casa
Hoje a história é fictícia. Verdades não serão ditas aqui, mas, prometo que será uma “estória” interessante, no mínimo engraçada e com cheiro de infância da década de 80. É início de maio de 2019, minha filha encontra-se internada no Hospital São Camilo. Sem vaga no CTI, ficamos na pré-internação. Muitas e muitas crianças estavam ali, amontoadas. Uma noite, escuto a criança, ao lado, falar: “Tira, mãe. Tira, mãe. Está coçando!”. E a mãe, responde meio sem graça: “Agora não tem jeito, filha. É piolho.” Ela olha para mim e sorri. Eu, sorrindo de volta, falo: “Coisas da vida!”. Cumplicidade e solidariedade na hostilidade do hospital. Quem dera aquele fosse o maior de nossos problemas. Dois dias depois, Agnes recebe alta. Enfim, iremos para casa. Alguns dias depois, quando já estava tudo bem, ela chega em meu quarto e diz: “Mãe, estou com alergia na cabeça. Tá coçando muito.” Eu, estranhando bastante, pois ela nunca tinha tido alergia, assusto-me. Ela senta-se em minha cama e, imediatamente, começo a busca pela dita alergia. Não via nada, nada mesmo. Foi quando olhei mais atentamente. Meu olhar se desviou do couro cabeludo e pousou-se sobre o cabelo. Será que via o que via? Pisco várias e várias vezes até acreditar ser verdade! Sim! Era verdade. Ela estava lá, linda, radiante, brilhante no meio do cabelo escuro. Havia uma lêndea. A retiro, cuidadosamente, e, não esperando escutar nenhum estalo, a aperto. Ploct!!! Ela estava viva! Começo a rir compulsivamente. Lembro-me da mãe do hospital e falo: “Não é alergia filha, é piolho!”. Agnes, olhando com os olhos arregalados, me diz: “Tira, mãe! Tira, mãe!” Identicamente à menina do hospital. Eu, sem parar de rir, a lembro de uma piada que ela amava na infância: “Um menino coçava muito a cabeça na escola. Um colega, vendo a coceira do garoto, pergunta: “O que tem em sua cabeça?” e o outro responde: “Piolho morto.” “Mas piolho morto coça?”, pergunta o menino. “Não, mas os amigos vieram para o enterro”. Agnes adorava contar essa piada. Ela ria sozinha todas as vezes que a contava. Relembrando a piada, ela não achou muita graça. No dia seguinte, passo na farmácia e compro um produto anti-piolho. Buscava pelo “piolhex”, mas esse não existia mais. Criolina também não seria uma opção na cabeça de uma adolescência do século XXI. Passo um produto novo, moderno, em sua cabeça e, em seguida, o velho e bom pente fino. Na primeira passada retiro um piolho sorrateiro. Mais uma vez, morro de rir. O produto foi eficiente na retirada dos piolhos, mas infelizmente grudou em seu cabelo por uma semana. Foram dias e dias lavando o cabelo duas vezes ao dia. Perde-se o piolho, fica-se o produto. Moral da história: a vida passa, a criança cresce, o piolhex e a criolina foram abolidos no combate aos piolhos, mas eles, pequeninas criaturas de vários e vários séculos, ainda existem e estão por aí à espera de uma cabecinha para morar! Bom, como disse no início, essa é uma história fictícia, mas poderia ter acontecido exatamente assim…
Diário de bordo, São Luiz/MA, 22 de outubro de 2019.
Estou no Maranhão. Ando livre pelas ruas. Impressiona-me a cidade. Muitas escadas no centro histórico, lembram-me Coimbra. A procura de comida, me deparo com um local cujo nome me chamou a atenção. Sim, eu procuro lugares pelo nome, adoro títulos. Cozinha Ancestral. A ancestralidade me convida a entrar. Era uma casa velha, cheia de histórias. Sinto o cheiro do local e gosto disso. Algo de ancestral aguça minha curiosidade. Na primeira sala havia uma exposição de arte. Vários artistas locais com suas obras, pequenos sonhadores. O anonimato também me convoca, principalmente pela coragem. Há coragem na exposição. Fico emocionada com as obras. Corajosos os anônimos. Uma delas era um grande pano azul, pendurado no meio da sala, formava um triângulo com os seguintes dizeres: “Tempo haverá”. Fico hipnotizada com a frase. Poucas palavras, muito significado. Perco-me no “Tempo há, verá” interpretação por mim. Lembro-me que ainda há tempo. E eu gosto de azul, minhas unhas acabam de me lembrar disso. No segundo cômodo localiza-se a cozinha. A simplicidade torna o ambiente extremamente requintado. Gosto do requinte do simples. As mesas eram de madeira rustica. Todas enfeitadas com pequenos panos coloridos. Sento-me em uma das mesas. Uma senhora vem a meu encontro e explica o funcionamento do local: “- Aqui ninguém serve ninguém. Todos participam.”. Gosto disso, estou incluída. Aquele lugar também era meu agora, talvez algo parecido com minha ancestralidade. Vou até o balcão para escolher o que comer. Na dúvida, peço duas coisas, sou indecisa com comida: um bolinho de camarão e um arroz típico do maranhão (era arroz, com feijão, com corne, com linguiça, com queijo etc…). Era o arroz dos “cons”. Peço, também, um chá gelado de erva doce com limão. À espera, fico admirando o local. Tinha uma foto de Marielle Franco. Ela estava presente. Várias frases demonstravam a resistência. A ancestralidade resiste e reside ali. Perdida em meus pensamentos, escuto a senhora chamar pelo meu nome. Meu pedido estava pronto. Pego o chá gelado e o bolinho, o arroz viria depois. Ainda caminhando até a mesa, provo o chá. Surpresa! Era um frescor inimaginável. A erva se misturava com o limão que se misturava com a erva e que se misturavam com o gelo. Uma explosão. Sento e fico por uns minutos de olhos fechados. Sinto o frescor e o saber. Eles inundam meu corpo e alimentam minha alma. Acordo daquele sonho e me deparo com a vasilha de bolinhos. Ainda havia motivos para sonhar. Um molho alaranjado cobria o fundo da vasilha. Não sabia o que era, mas como uma boa “boa de garfo” me jogo na experiência. Pego o primeiro bolinho, mergulho-o no molho. BUM! Outra explosão de sabores. Fico de olhos fechado mastigando, mastigando, mastigando. Peço a Deus para que eu nunca me esqueça aquela sensação. A surrealidade me paralisou por alguns minutos. Um pouco depois, ainda enquanto eu vivia o prazer imediato (nem tão imediato) da alimentação, sou convocada a pegar o prato de arroz. Eis a grande surpresa: a comida vinha em uma cuia! Sonho realizado! Quem me conhece sabe que não gosto de comer em pratos, amo cuia e tudo que se pareça com elas. Aguça minha memória afetiva. A comida era diferente, quente, ao mesmo tempo que temperada, era suave e leve, forte e sutil. Demoro para comer tudo. Sinto-me acolhida na comida. Entendi o verdadeiro significado ou sensação de inclusão. Eu estava presente, participei do processo. Aquela comida era eu em ancestralidade. Por um minuto duvido da experiência que estava vivendo ali. Acho que temos o dom de duvidar das coisas boas da vida. Mas, rapidamente, me deparo com o real da sensação e a leitura do nome me enche de sentido. Era mesmo uma Cozinha Ancestral!
Diário de bordo, São Luiz/MA, 23 de outubro de 2019.
Estou no Maranhão participando de um congresso. É impressionante como a academia perdeu o sentido. Acho que perdi minha vaidade. As palestras são sempre as mesmas e continuamos no achismo da certeza de que sabemos mais dos outros que os próprios outros. A ingenuidade da prepotência. Por falta de identificação, vim para o hotel escrever. As palavras brotam sem eu saber de onde. Acho que tenho um poema que fala sobre isso. Por um instante fico com medo de enlouquecer. Minha cabeça acelera como um carro de fórmula 1. Em algum momento vou precisar parar. Mas, não agora. O fato é que nessa corrida contra o tempo, acabo de terminar meu primeiro livro de poemas. Mas não quero chamá-lo assim. Primeiro porque vi a complexidade que é para escrever um livro. Deus me livre! Muitos protocolos e avaliações limitam a criação. E há sempre alguém dizendo o que é bom. Para quem? Não há liberdade na escrita. Segundo porque escrever um poema também é complexo, exige técnicas e eu não as tenho. Fico então com um livro sem título de textos-poemas. Acho que esse poderia ser um bom título, caso eu venha a publicá-lo. Isso me daria uma certa liberdade. Eu aceito! Não é um livro e nem são poemas. Acabo de me autoriza a escrever o que quiser, afinal não sou uma escritora. Mas o fato é que, após terminar esse não-livro, estou perdida no vácuo. Entendo o que disse Clarice quando fala que morre entre um trabalho e outro. Não quero me comparar a ela, isso seria uma injustiça comigo mesma. Sorrio disso. Mas os sentimentos se assemelham, e hoje me sinto morta. Parece que nunca mais as palavras sairão de dentro de mim. Pode ser que isso seja uma verdade, mas não me interessa. Lembro-me que não sou uma escritora. Agora estou à beira da piscina, escrevo este texto e tenho que me preparar para apresentar um trabalho daqui a pouco, mas isso também não importa. Não há sentido, muito menos vaidade. Seja o que vier, estou pronta. Eu me encontrei, ainda que morta, e não sou uma escritora.
Diário de bordo, Moeda, oito de junho de 2019.
Da estrada escura avistamos uma grande fogueira. Paramos o carro. Sim, era uma quermesse. Há muito tempo não fazia parte de uma. A cena me levou a um lugar remoto de minha infância: estrada de terra, cheiro de canjica, churrasco, quentão. O frio era um sentimento a parte. Eu gosto dele. Memórias se afloraram naquele momento, me senti feliz. Descemos do carro. Andamos um pouco, até chagar a uma casa onde vendiam as guloseimas. Canjica a três reais, caldo de mandioca e de feijão também. O preço não pagava o afeto e o cuidado presente nos produtos. Todos nos olhavam curiosamente, afinal, éramos os estranhos no ninho. Muitos sorriam pra nós. O “boa noite” estava sempre presente. De um lado, um grupo, de pé, quase que inacreditavelmente, jogava bingo. Uma garota gritava os números, enquanto a pequena multidão esperava, ansiosamente, a enunciação. Até que alguém grita: Bingo!!! Todos sorriem, ainda que com despontamento. Cena peculiar de uma cidade do interior. Do outro lado da rua havia uma pequena igreja, em frente à uma minúscula praça com poucos brinquedos. A igreja era simples e singela, bem diferente das que conheci na Europa. A diferença não estava apenas no tamanho, mas na fé. Na pequena igreja, pessoas oravam com os olhos cerrados, cantavam cantigas religiosas, sorriam sozinhas. Nas grandes igrejas europeias, o celular mediava a fé, registrava a grandiosidade. Não posso dizer que não existia fé ali, mas a mediação pela tela me incomodava. Na porta da pequena igreja, duas meninas entregavam um número para um sorteio. Uma bíblia seria oferecida ao ganhador. Pude ver uma procissão sair da igreja e contornar a praça. Foi a procissão mais rápida que já vi, mas não menos intensa. Apesar do tamanho, era um coletivo que se fazia da fé. Emociono-me com o que vejo. Foi um misto de alegria, diante a possibilidade da simplicidade, e de tristeza, em ver a escolha pela complexidade. De repente, vejo Agnes brincando em um escorregador. Ela sorria a cada escorregada. Luiz Felipe corria de um lado para o outro, pulava de brinquedo em brinquedo, vivenciava seus 14 anos. Gabriel brincava com a menina que parecia ter uns três anos. Diferenças? Não haviam. Saíram da virtualidade, não pegava celular ali. Maria José sorria esperando o show da quermesse. Ela gosta de música sertaneja. O palco era um pequeno palanque que, com toda certeza, não seria aprovado pelo corpo de bombeiros em caso de vistoria. A música começa assim que a missa termina e a procissão passa. Agnes, Luiz Felipe e Gabriel cantavam felizes cada música que começava. Por incrível que pareça, eles conheciam todas. Acho que entenderam que o sertanejo não é fruto do Spotify. Eu dancei com ele, lembrei-me de uma vez que dançamos forró, ainda namorados. Foi um momento feliz. Todos se aglomeraram ao pé da fogueira. Ela esquentava nosso corpo e nossa alma. Trazia calor, fazia esquecer o frio. Percebi que, ali, o tempo não era tempo, pelo menos não parecia. Ele não passava. Era outra forma de socialização, outra maneira de sentir a fé, de viver a temporalidade. Foi impressionante perceber que em 40 Km de distância do centro de BH a diversidade dominava minha visão e invadia minha vida. Mulheres simples, homens simples, vida simples que se fazia complexa diante a verdade que eu senti naquele pequeno lugar. Foi a minha verdade descoberta, as várias possibilidades, algumas escolhas a serem feitas, retratos de uma vida pouco retratada
Foto minha, Moeda – Minas Gerais
Diário de bordo, São Paulo, 22 de maio de 2019, hora do almoço.
Era pra ser um almoço em um dia de congresso, mas a divisão de uma mesa se transformou na grandeza de um encontro, encantos de São Paulo. Era uma senhora de uns 65 anos, chinesa, guardava, cuidadosamente, um agrado que queria fazer ao marido. Sorriu e me disse: “Eu sempre levo algo diferente pra ele comer”. Começo a conversar com a senhora e, mais que depressa, me vejo imersa numa história inacreditável. Tempo e memória se encontram diante meu olhar. Era uma senhora que veio da China. Fugia com família de um país acabado com a Guerra. Tinha presenciado a bomba de Hiroshima e Nagasaki, ainda muito pequena, não se lembrava de nada. Inicialmente, mudou-se para Argentina com a família. O pai negociou a vinda ao Brasil com o próprio Getúlio Vargas. Foram morar na Amazônia, não suportaram o clima quente e úmido. Mudaram-se para Curitiba e, depois, São Paulo. Quando criança sofreu bulling na escola, o nome lebrava a musica “cai, cai, balão…”. Crianças e suas peuqenas maldades… Ali, em minha frente, já era Doutora em Engenharia, lecionava na USP. Ajudou a construir o metrô de São Paulo. Foi bonito vê-la contar sobre a escolha dos azulejos. Era para ser apenas um almoço, mas imergi em uma história singular, profunda, peculiar e de resistência. Foi emocionante escutá-la falar, foi bom ver as possibilidades de encontro que a vida nos oferece.
Diário de bordo, Búzios, algum dia de janeiro de 2016.
“Era uma manhã sem chuva, mas nublada – branca e cinza. Acordei cedo como de costume. Ao perceber que não chovia, troquei de roupa e coloquei meu tênis. Fui correr. Como foi bom estar na praia. Presenciei várias cenas interessantes, pude observar a vida cotidiana. Várias são as vidas que nos cercam, precisamos ter olhos para vê-las. Vi um casal de idosos que andava lentamente pela praia. Eles andavam enquanto a aguá molhava seus pés. As ondas vinham com agressividade e, ao mesmo tempo, doce e suave. Cada onda que batia nos pés da senhora era um riso que saia de sua garganta, de sua boca. Sua alma sorria. Era uma alegria contagiante, colorida. Naquele momento, consegui perceber o sol. Era um sol tímido, com raios quase quentes, mas que não conseguiam penetrar em nossa pele. No mesmo momento, percebi um homem que corria com seu cachorro. Era um cachorro grande, me parecia um vira-lata. De repente esse cachorro pula num pequenino maltês branco que brincava com as algas na areia. O pequenino entrou em pânico, correu para os braços de sua dona, uma mulher de meia idade que sorriu para o dono do cachorro. Foi uma hospitalidade descontraída. Foi quando vi um pássaro na praia. Ele andava lentamente pela beira do mar, parecia se exercitar. Era um lindo pássaro. Tirei uma foto, registrei aquele momento na alma e no celular. Ele estava lindo, parecia dançar na areia que se misturava com a água das ondas…”
Diário de bordo, 11 de maio de 2019.
“Tudo começou quando ela me pediu que fizesse um vídeo falando sobre o porquê escolhi a Kinesis para dançar. Inicialmente parecia algo fácil, simples, afinal não tenho problemas para falar. Mas, o que parecia quase trivial se transformou numa experiência de cura, de amor e de fé. Me lembrei do tempo em que dançava balé clássico. A aula formatada, me encaixava em determinados padrões musicais. Eram valsas e valsas tocadas durante a aula. Sim, havia um pianista lá. A professora batia com o cabo de vassoura no chão, marcava o tempo. Não o nosso tempo, o tempo dela. As batidas ressoavam em minha cabeça à noite, todos os dias. A dança se tornava um protocolo, e eu nem percebia. Um dia, em um acidente durante a aula (eu espero que tenha sido um acidente), tive uma lesão grave na perna. Dancei até o final, afinal a professora não via minha dor. Foi simples pra ela me fazer dançar. Dancei. A dor se entranhou em mim, se misturou em meu sangue, se fez concreta. A dor era eu. De resultado, seis meses sem dança. Mas, isso não era possível dentro da formação (ou da formatação). Tive que parar. Jurei a mim mesma que nunca mais me submeteria àquilo. Não me submeti, mas também nunca mais dancei. Vinte anos depois, vendo umas fotos de dança de uma colega, um horizonte se abriu diante meus olhos. Uma professora com cara de criança e com olhar de amor me chamou a atenção. Fui fazer uma aula experimental, meio desconfiada. Não sei se duvidava dela ou de mim. Entro na sala meio sem graça, há 20 anos não dançava, não sabia o que sairia dali. Aquele foi o primeiro dia, do resto de minha vida. A dança voltou com intensidade. Era meio desconjuntada no início. Mas o tempo se encarregou de curar as feridas. A professora, cuidadosamente, cuidou de cada machucado, cada marca, cada pedaço de mim desfeito no tempo, trouxe a fé, refez a dança. Por conta dela, hoje namoro com o espaço, quem sabe um dia possamos nos deitar juntos, me misturo com a música, sem saber onde ela termina e eu começo, me torno melodia. Hoje eu construo, desconstruo, significo, re-significo. Eu faço minha dança. Hoje eu me sinto bailarina, uma bailarina de mim mesma, daquelas que dança com a própria vida. A professora com olhos de amor hoje se tornou um dedo de minha mão (ela sabe disso). Obrigada Renatha Maia, dos dedos, você só pode ser o polegar, pois é o mais importante. A experiência vivida me trouxe um passado triste, mas me mostrou as infinitas possibilidades que tenho à partir de agora.”
https://www.coletivokinesis.com/
Diário de bordo, algum dia no início do mês de maio de 2019.
“É hora do almoço. Como todos os outros dias saio em direção ao restaurante da ASLEMG. Diante o sinal de PARE, começo a observar dois adolescentes a trabalhar, vendendo balas no sinal. O maior, colocava as balas sobre os retrovisores dos carros, esperando, ansiosamente, que alguém abrisse a janela e o entregasse os dois reais tão esperados. O menor, agachado no passeio, colocava as balas em um saquinho transparente. Ele as contava, cuidadosamente, até que as balas formassem os dois reais. De repente, o adolescente maior começa a bater no janela de um dos carros, pedindo o senhor que abrisse o vidro. O senhor ignorava, completamente, o garoto. As batidas começaram a ficar mais fortes. Havia um desespero ali. Ele batia e pedia que o senhor abrisse a janela. Pedia, copiosamente, que o senhor atendesse o seu pedido. E nada. O sinal abriu, o carro arrancou. Alguns sacos de bala caíram ao chão. O garoto não teve tempo de pegar os sacos sobre os retrovisores. Ele estava ocupado demais para isso. Precisava que o senhor abrisse a janela. Eu já tinha atravessado, mas andava devagar esperando que algo me mostrasse o desenrolar da cena. A cena tinha chamado muito minha atenção: um garoto sendo ignorado batendo num vidro do carro. Por várias vezes me perguntei o porquê daquilo. Não das batidas, mas me impressionei com a pobreza do olhar do motorista. Ele não queria ver. Não havia perigo ali. Foi quando o garoto menor pergunta: O que foi aquilo? O que aconteceu? e o maior responde: Tinha um menininho no banco de trás, ele queria a bala, quando vi que o babaca não ia comprar, quis dar a bala pra ele, mas o FDP não abriu o vidro. Naquele momento eu não sabia se continuava andando, se ia embora, se fingia que não tinha visto a cena. Mas, me virei e voltei. Comprei um saco de bala e, tentando consolá-lo com um sorriso, disse: Tem gente que só enxerga com os olhos. Não sei se ele entendeu, mas foi o melhor que pude fazer diante a vergonha alheia que sentia. Ele continuou com raiva, ignorado, do lado de fora daquela janela fechada.
Diário de bordo, dia 27 de abril de 2019, quase na hora do almoço
“Estamos na Câmara Municipal de Moeda (MG). Acabamos de participar de uma roda de conversas com indígenas Maxacali. Como sempre, me surpreendo com os encantos das coisas mais simples da vida: chão de terra, prefeitura dentro da rodoviária, calor de deserto… Lembro-me daquilo que gosto. Algo poderia parecer ruim, mas não era. O simples se fazia complexo na cena. Havia amor ali. A simplicidade gerava muitas oportunidades: foto dos índios, compra de um colar de girassol, o aprendizado do canto, o conhecimento das crenças, a pesquisa etnográfica em sua riqueza. Bebi a cultura dos índios. Termina a sessão, esperávamos uma amiga na porta do plenário quando um senhor vira para meu digníssimo esposo e fala: “Bão? Cê ta sumido, sô!”. Assusto-me com a abordagem, pois parecia que ele o conhecia de longa data. Estranho? Não, isso sempre acontece. Jesus, mais que depressa, responde: “To não, sô. Eu tô aqui mesmo!” Com um grande sorriso no rosto o senhor falar: “Então tá bom!”. Três frases, infinitas possibilidades. O diálogo poderia terminar por ali, o encontro poderia ser frio, distante, o afeto poderia se transformar num riso debochado. Não com ele. A conversa afetiva se espalhou diante meus ouvidos, penetrou em minha alma. Senti orgulho em fazer parte da cena. O senhor era Leandro, morador de Moeda, músico, esposo, pai de família. Com toda certeza, Jesus nunca tinha o visto, pelo menos não nessa vida. Mas, com a mesma certeza, eles se encontraram. A cena termina com o abraço sincero e uma foto. Fim que se fez começo naquela hora do almoço, com a barriga vazia e o coração cheio de história”.

Diário de bordo, dia 01 de outubro de 2018, um pouco depois das dez da manhã
“Chegamos ontem. Meu quintal é lindo! Há uma praça com uma igreja velha. Eu já tinha visto essa igreja. Ela não tinha valor. Será? Meus olhos tinham visto, mas não enxergaram. Como eles não enxergaram isso? É lindo! Minha rua não passa carro. É uma daquelas ruelas velhas, ou será cheia de histórias? Cheias de histórias. O apartamento é bom, muito bom. Minimamente, bom, 40 metros quadrados. Minhas roupas cabem em uma gaveta. Impressionada com isso. A primeira noite foi boa. Agnes dormiu bem, estávamos cansadas. Há muito tempo não tinha um gráfico glicêmico assim, média de 120. Ela está feliz, pelo menos eu acho. Ontem fomos ao supermercado e acabei conhecendo a ‘louca do supermercado’, vulgo, Agnes. Foi bonito ver a empolgação dela, foi bonito ver seu olhar enxergando coisas novas. Comprei um vinho. Infelizmente o bebi sozinha. A experiência é linda, sei que tenho que vivê-la. Hoje cometi meu primeiro erro na casa nova. Fechei toda a janela, janela escura, o quarto ficou inteiramente sem luz. Acordei e pensei: ‘Putz, perdi o sono”. Sem sono, pego meu celular. Me espanto com as horas, São 10 horas da manhã. Ri de mim mesma. Levanto devagar, abro a janela e a rua estava lá: linda. Agora estou aqui, tomando meu café e escrevendo essa primeira página de meu diário de bordo, minimamente cabendo dentro de mim mesma, muito mais feliz. Adaptada.”
