Era Natal, o frio na barriga impedia que o alimento passasse por minha garganta. As mãos frias se embolavam esmagando os dedos. O sorriso provocava um leve ardor muscular na face, congelada a mostrar os dentes. Às vezes, as mão apertavam a saia, secavam o suor. A respiração fazia o peito subir e descer e o ar era um ruído forte que entrava pelo nariz e saia pela boca. Sintomas de uma ansiedade infantil, prestes a receber o tão esperado presente do velho e bom Papai Noel.
A noite parecia não ter fim. Mesa arrumada com copos e talheres que só usávamos no Natal. Minha mãe terminava de preparar o salpicão, comida com cores de amor, lembrança que não me canso de lembrar. Mas as horas não passavam. Eu tinha a sensação de que o relógio havia congelado o ponteiro no mesmo lugar. A temporalidade infantil tem dessas coisas: o tempo não passa quando se deseja que ele corra. Contradições de infância.
Chaga a grande hora. O relógio uni os dois ponteiros no número doze. Era, finalmente, meia-noite. Eu, corro para o quarto junto com minha mãe. Finjo dormir e escuto os sinos do trenó do Papai Noel. Ele havia chegado. Era ele, em carne e osso, bem na sala de minha casa. Nessa hora a respiração já não fazia mais parte de meu corpo. Nada se movia. Eu estática, sem ar por uns cinco minutos, dedos entrelaçados e os olhos cerrados com toda força que ainda existia em meu corpo.
Foi quando escuto uma conversa:
– Oi Papai Noel, seja bem-vindo a nossa casa! É um prazer ter o Senhor aqui. Como foi a viagem? – pergunta meu pai.
– O prazer é meu! A viagem foi ótima, adoro estar com vocês nessa época do ano. E esses biscoitos, são para mim?
– Ah, sim, claro! Foi a Danielle e a mãe dela que fizeram. O copo de leite também é para o Senhor. Danielle disse que você gosta.
– Sim, sim. Eu, na verdade, adoro! Respondeu Papai Noel depois de dar aquela sua clássica risada! Ho, ho, ho!
De repente, Papai Noel começa a falar sobre mim:
– Bem, mas vamos ao que interessa. Hoje estou aqui para trazer os presentes de Natal. Eu tive um problema em relação ao presente de Danielle.
Nessa hora, senti um arrepio na coluna, os olhos cerrados se arregalaram e o sorriso deixou de fazer parte do meu rosto. O susto tomou todo o meu corpo e, em um sobressalto, pulei da cama e tive o impulso de correr. Minha mãe me segurou em seus braços, olhou fixamente em meus olhos e colocou o dedo indicador esticado em frente aos lábios e fez: “-Psiu!”. Era um sinal para eu me aquietar, o que era, praticamente, impossível naquela situação.
Como uma boa menina, me entreguei a seus braços e fui abraçada. Meus olhos se fecharam e, pela primeira vez naquele dia, eu respirei profundamente. O ar entrou em meus pulmões e acalmou todos os meus músculos e eu, simplesmente, me desfiz nos braços de minha mãe. Talvez eu tenha me refeito. Respirei novamente e escutei seu coração. Fui tomada por uma paz imensa, eu sabia que ficaria tudo bem depois daquele abraço.
Fato é que Papai Noel começou a falar:
– Bem, na realidade, Danielle foi uma excelente menina este ano, merecia muito ganhar a Barbie que havia pedido, com todas aquelas roupas. Mas, infelizmente tive que passar a Barbie e as roupas para uma menina que estava doente, muito doente. Dessa forma, trouxe essa outra boneca para Danielle, sabendo que ela ira entender. Quanto às roupas, a Sra. Roselande pode costurar umas roupas para essa linda boneca. E tudo ficará bem!

Confesso que nessa hora senti um pouco de raiva do Papai Noel. Eu queria mesmo a Barbie e todas aquelas roupas bonitas. Mas, fazer o que, né? Agora era continuar dentro daqueles braços mágicos que tinha minha mãe. Aproveitei o momento. Mal sabia eu que o abraço era o meu grande presente de Natal, fato que só saberia 30 anos depois. Registro esse reconhecimento agora.
– Agora me despeço e deixo um grande abraço para Danielle. Fale para ela continuar sendo uma boa menina!
– Tchau, Papai Noel, vai com Deus! Despede-se meu pai.
Foi quando, meu pai abre a porta do quarto e me entrega um embrulho colorido. Rasgo o papel com toda minha vontade em ver a boneca que não era a Barbie. Ufa, estava tudo bem! A boneca era muito parecida com a velha e boa Barbie. Meus olhos generosos de criança não reconheceram as grandes diferenças. Respiro aliviada! As mãos já não suavam, mas meu corpo doía todo. Fui tomada por um grande cansaço e adormeci com aquela caixa de boneca.
Na manhã seguinte, acordo toda faceira com a caixa de boneca. Olho pra minha mãe e falo:
– Vamos fazer as roupas?
Minha mãe, sempre a disposição fala:
– Vamos, mas terá que ser depois do almoço, pois seus avós virão almoçar aqui hoje. Enquanto isso, pega esses panos aqui e tenta fazer alguma coisa. Eu sei que você consegue. Corta algumas peças e depois eu te ajudo a costurar.
Minha decepção foi enorme. Queria as roupas prontas rapidamente. Peguei os panos e comecei a separá-los. Olhava para um, olhava para outro e nada saia de minha cabeça. Nada mesmo. Foi quando me lembrei de uma fantasia que minha mãe havia feito para mim naquele ano. Era uma fantasia feita com aqueles sacos pretos de lixo. Pensei com meus botões: “Bem, acho que aquela eu consigo fazer!”. Era um saco com três buracos apenas. Procuro nos panos e não encontro nada parecido com um saco de lixo. Olho para a meia que estava em meu pé. Sim, ela era um saco (e estava um lixo). Pego a meia e começo a cortar. Lembro que minha tesoura não cortava direito. Corro até a máquina de costura de minha mãe, abro a gaveta e pego aquela linda e afiada tesoura. Agora eu tinha um bom objeto de trabalho. Corro de volta ao meu pequeno ateliê, improvisado encima da cama. Começo a cortar a meia com a lembrança do saco de lixo. Eis que, do nada, minha boneca (que não era a Barbie) tinha um vestido. Corto uma tira de um dos panos dados por minha mãe e, rapidamente, ela estava com um vestido e um cinto. Tá, tudo bem, confesso que não era muito bonito, não especificamente o que eu queria, mas, mesmo assim, saio correndo para mostrar a minha mãe. Ela olha e fala:
“– Você fez isso?”, pergunta pegando a boneca em suas mãos.
Eu apenas balanço a cabeça positivamente, com um enorme sorriso no rosto.
“– Meu Deus! Temos outra costureira na família! Ficou ótimo! Vai, continua…”, disse minha mãe.
Voltei para meu ateliê e continuei a cortar os panos. Fiz um buraco em um retângulo. Ele se encaixava perfeitamente na cabeça de minha boneca (que não era a Barbie). As pontas ficaram soltas e, novamente, utilizo o cinto para transformar aquilo em uma blusa. Sim, minha boneca tinha um vestido e uma blusa. E assim foi! Muitos panos viraram peças de roupa para minha boneca. O cinto, naquele momento, servia de arremate para todas as minhas peças. Ele amarrava tudo! Era o cinto mágico da boneca que não era a Barbie.
Lembro-me de trocar as roupas de minha boneca várias e várias vezes. Não sei quantas peças eu fiz. Sei que minha mãe não fez nenhuma e isso não me fez falta. Minha boneca estava bem equipada com tudo aquilo que eu tinha produzido.
Fato é que eu não me lembrava dessa história, como provavelmente não lembro de várias outras. Mas, elas fazem parte de mim e estão presentes em minhas narrativas cotidianas, fazem parte de um olhar que se aflora. Foi quando me vi vestida em um vestido igual ao da minha boneca (que não era a Barbie e que não tem importância nenhuma esse fato). Sim, um vestido igual à minha fantasia de saco de lixo. Mas, agora, um grande vestido, feito por mim, com um pedaço de pano cilíndrico e uma tesoura. Foram apenas dois corte e eu tinha um vestido.
Um dia, usando esse vestido, um pouco desconfiada, pensando que todo mundo ia perceber que ele era uma pequena farsa, acontece algo inusitado.
Meu marido para em uma farmácia para que eu compre um remédio. Antes de descer do carro viro para ele e falo:
“– Aqui, desce comigo e olha se as pessoas estão reparando em meu vestido”. Eu realmente não sabia se ele estava esquisito ou não, mas confesso que estava “me achando” dentro dele!
Faço a compra e, mais que do nada, uma mulher bate em meu ombro e me pergunta:
“– Aqui, aonde você comprou esse vestido? Ele é maravilhoso!”
Naquele momento eu não sabia o que responder. Fiquei muda olhando para ela. Confesso que minha surpresa me deixou um pouco (ou totalmente) desconsertada. Continuei olhando para ela, em silêncio. De repente, fui salva pela resposta imediata de meu marido:
“– Ela fez!”
A mulher se surpreende.
“– Nossa, é maravilhoso! Parabéns! Você vende?”
Eu, sem nada pra falar, respondo:
“– Sim, pelo instagram, no perfil chamado Philomena.” Claro que nesse dia ainda não tínhamos a marca, muito menos um instagram. Mas foi o nome que me veio à cabeça naquele momento. Na realidade vieram dois nomes, de duas grandes costureiras, o da minha mãe e o da minha avó. Mas como Roselande não seria um nome rentável, falei o da minha avó: Philomena. Elegante e forte!

E é aí que entra minha nova história. Uma história alinhavada a quatro mãos, costurada com as agulhas e linhas de amizade, de amor e de confiança. Chego na casa de minha prof-amiga Renatha, íamos estudar aquele dia. E conto a história. Ela, mais que depressa fala:
“– Então vamos fazer!”
Na realidade já havíamos conversado sobre essa possibilidade: criar roupas próprias, mas não era algo efetivo. Nesse dia nem o nome que pensei eu falei para ela. Mas, claro, sua empolgação me encheu de surpresa e felicidade.
No outro dia, saímos e compramos muitos e muitos panos. Os panos viraram modelos próprios e de inspiração. Usávamos cada vestido como se fosse uma “roupa de marca”. Cada um gerava um comentário diferente. E tudo passou a ser reaproveitado, até mesmo o pano que vinha cobrindo o sofá virou um vestido.
Criamos o instagram e nós duas nos tornamos sócias na aventura da Philomena.
Lembrar-me dessa história me fez questionar para onde vai nossa criatividade quando crescemos. O que fazemos com ela ou o que é feito dela? O que é feito, ainda, de nossas melhores memórias? Claro que elas fazem parte de nós, pulsam em nossa alma e desassossegam nosso espírito. Mas, é necessário costurarmos essas memórias, e nessa grande colcha de retalhos identificar as mais singelas histórias, a narrativa primária de nossa existência.

Texto elaborado para Renatha Maia! Obrigada por essa parceria linda.
Comecei a ler….
Fui viajando na história….
Queria chegar ao fim pensando que finalizaria com a boneca que não chegou, o abraço e a inquietude para fazer roupas para a Barbie que não era a Barbie….
Ai vem a revelação que já estava escrita….
Uma artista no corte, na costura, nas cores….
O nome escolhido….
Rui a história contínua sendo uma poesia….
Real…
E linda….
Um carinho….
Cleusa
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Que presente de mensagem! Obrigada por isso é por tanta generosidade!
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Sem palavras para descrever o meu sentimento neste momento. Um mergulho profundo e visceral em nossa história familiar .Você descreve o momento mágico que vivenciou de maneira ,que é possível se sentir dentro daquele momento. Continue nos embalando com textos ,que nos trazem tantas emoções. E assim surge a escolha perfeita do nome:Philomena.Uma homenagem justa,trazendo toda a singeleza que nos passava ,nossa amada .
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