#ImersãoConto: O dia em que o medo chorou

De repente, eu acordei e percebi que algo de muito estranho acontecia. Olhei para os lados, vi que alguma coisa se mexia, eram braços. Olho, atentamente, um pouco mais abaixo, eu tinha mãos. Elas se abriam e fechavam num movimento uniforme. Dançavam no espaço, comandadas por mim. Eu pude senti-las. Mexo os pés, sacudo a cabeça, pisco os olhos várias e várias vezes. Sim, era real. Eu tinha um corpo. Mexo os lábios e, como se pudesse ouvir meus pensamentos, percebo que podia falar. As palavras saíam, desgovernadas, por minha boca. Eram pensamentos que se concretizavam. Depois de anos e anos de silêncio, eu, enfim, falava. Foi assim que tudo começou e agora estou aqui, em uma narrativa sobre mim mesmo. Incrivelmente, meu despertar não foi a coisa mais marcante que me aconteceu naquele dia, mas, sim, o encontro com ela. Esse encontro foi realmente transformador. Falarei dela em breve, mas, primeiro, sinto que tenho que me apresentar formalmente, apesar de saber que todos já me conhecem:

Muito prazer, meu nome é Medo.

Sim, aquele velho e poderoso Medo que você conhece bem.  Pós apresentação, retorno ao começo: eu tinha um corpo. Eu era jovem, alto, forte, bonito e, além de tudo, falava. Mais que depressa, levantei-me e saí a caminhar pelas ruas. O mundo, para mim, nunca teve cores, nem som. Era todo em tons de cinza. Seu silêncio cortava meus ouvidos e ressoava em minha cabeça como um grande eco. Eu apenas vagava por aí. Mas, caminhando, percebi que ele não era assim. As flores tinham cheiro, e muitas cores. Meus pés amassavam e estalavam as folhas secas, os pedaços de madeira se desfaziam ao receber o toque do meu caminhar. Sentia como se estivesse flutuando. Toquei a grama que brilhava, molhada. Ela era gelada. Sorri sozinho. De repente, um cachorro se aproximou de mim, latiu forte. Por um minuto pensei que tinha sido descoberto. Somente impressão. Eu era mesmo humano. Continuei andando, pisei em uma poça d’agua. Senti a água entrar pelos meus sapatos. Meus pés se molharam e eu sorri de novo. Ao mesmo tempo, comecei a sentir um calor sobre minha pele. Era o sol. Olhei para cima e mal pude acreditar no que via. O céu era realmente lindo, bem diferente daquilo que enxergava antes. Fecho os olhos e deixo a luz penetrar em minha pele. É boa a sensação de calor. Gargalho sozinho. Vejo que as pessoas começam a me olhar. Abaixo a cabeça e caminho lentamente, como se eu fizesse parte da cena. Vejo pessoas andando apressadas para chegar ao trabalho, ou a algum lugar, ou, ainda, em lugar nenhum. Muitos carros começam a buzinar. Vejo que o sinal se abrir e alguém não arrancou. As buzinas invadem a sonoridade do ambiente. Incomodam. Ando mais rápido, desgovernado. O ambiente me contagiou. Foi quando a vi, sentada no banco de uma praça. Ela estava sozinha e segurava um cartaz que me chamou muita a atenção. Por ironia do destino, eu podia lê-lo. As palavras me causavam um certo mal-estar. Sem entender, cheguei perto, sentei-me ao lado dela. Ela era uma senhora, aparentava uns 75 anos, franzina, estatura pequena, magra. Estava de cabeça baixa, eu não conseguia ver seu rosto direito. Ela tinha os cabelos grisalhos, amarrados por um rabo de cavalo. A parte aparente de seu rosto demonstrava a longa caminhada percorrida. As rugas se faziam presentes. Eram texturas que se pareciam com os troncos das árvores, morenas. Presentes do tempo. Ingrato tempo. Ela vestia uma camisa branca, desgastada e suja, e uma calça azul escura, que o desbotar a fez clara. No pescoço, carregava um terço de madeira, cuidadosamente guardado dentro da camisa. As sandálias gastas protegiam, minimamente, seus pés, quase descalços. As unhas, malfeitas, estavam pintadas com um esmalte lascado, vermelho escuro, velho. O cartaz continuava lá, firme, com aqueles dizeres que, de certa forma, me angustiavam. Ela me olhou com um olhar solidário, abriu um sorriso e respirou fundo. Vejo seu rosto. Por um momento pensei que seria desmascarado. Essa sensação não saía de mim. Claro que eu não seria. Eu estava bem diferente daquilo que era. Respiro fundo também, aliviado. De repente, ela pergunta:

– Tudo bem, meu jovem?

Eu, querendo dizer: “Claro, eu sou o Medo e estou andando, falando e vivendo uma experiência transcendente e incrível”, respondo:

– Sim, e com a senhora? Resposta breve de um jovem imaturo.

E ela me responde:

– Também. Eu já não tenho mais medo.

Senti algo congelando dentro da minha barriga. Minhas pernas tremeram. As mãos suaram. Meus olhos se arregalaram e senti como se meu sangue tivesse congelado dentro de minhas veias. Olho fixamente para frente e, como num reflexo, eu pergunto:

– Co, co, como assim não tem mais medo? Sim, eu estava gaguejando.

– Não tenho mais medo, só isso. Como o rapaz se chama? Ela pergunta, querendo saber um pouco mais sobre mim.

– Eu me chamo… Eu me chamo… Euclídes. E a senhora? Eu não poderia falar meu nome. Ela não entenderia. Gaguejo novamente. Sinto-me meio ridículo com a resposta.

– Sou Rose, prazer.

– E o que a senhora faz aqui, sozinha, com esse cartaz? Pergunto a ela.

– O rapaz está com tempo? Posso lhe contar minha vida.

Mais que depressa, respondo que sim, afinal não tinha nada de interessante a fazer.

– Eu nasci aqui mesmo, em Belo Horizonte. Sou a segunda filha de quatro irmãos. Somos três mulheres e um homem. Minha mãe era uma senhora italiana, de olhos azuis e que sorria com a alma. Meu pai, um negro, neto de escravos, forte, bonito. Eu nasci dessa diversidade. Lá em casa, eu falo que somos dois pretos e dois brancos. Brincamos internamente com nossa diversidade. Gostamos disso. Minha mãe era dona de casa, daquelas que cozinhava com amor. Até hoje posso sentir o cheiro do molho de tomate que ela fazia. É bom cheirar com o coração. Meu pai era policial civil de profissão, mas se tornou barbeiro por falta de opção. Minha vida de medo começou quando eu tinha sete anos, quando meu pai foi preso. Não me lembro do dia exatamente, sei que era uma noite chuvosa, o telefone tocou e meu pai o atendeu. Ele teria que viajar para Uberlândia, teve uma ocorrência de gente importante lá. Alguém havia assaltado uma relojoaria. Ele foi. Voltou preso. Eu era muito pequena pra entender o que tinha acontecido. Ninguém falava nada sobre o assunto. Lembro que minha mãe chorava todas as noites, era um choro contido, silencioso, daqueles que a gente chora sozinho, quando ninguém nos vê. Eu também chorava, mas eu tinha o medo como companhia.

Naquele instante descobri o que era um arrepio. Pude senti-lo na alma. Eu não me lembro de todas as pessoas que acompanhei. São inúmeras. Impossível lembrar, mesmo diante essa especificidade. E ela continuou:

– Aos sábados íamos visitar meu pai. Ele ficava sozinho em uma cela, benefício por causa da profissão. Meu pai e minha mãe se abraçavam por vários e vários minutos. Eu pensava que eles ficavam horas abraçados, mas não, era apenas a temporalidade vivida por uma criança aflita. Eu ficava lá, de orelhas em pé, esperando que alguém falasse algo sobre o tinha acontecido. Nada. Ninguém falava nada. Era um silêncio cortante.

Mais uma vez, respirei fundo. Eu sabia do que ela estava falando, eu conhecia aquele silêncio cortante. E, Rose, continuou:

– Foi quando um dia, me fingindo de despercebida, escutei meu pai dizer: “- Eu não podia fazer aquilo, seria uma mentira, colocaríamos um inocente na cadeia. Eu tinha que deixa-lo fugir”. Percebi que algo estava errado. Ele não tinha matado ninguém? Como assim? Por que estava preso, então? Foi quando o perguntei: “Mas, o senhor não matou ninguém?” E ele respondeu: “Não, minha filha, mas deixei alguém fugir”. Eu não entendi direito aquilo tudo, pensava que somente quem matava ou roubava ia preso. Mas, na hora, senti um alívio imenso em saber que meu pai não era um assassino. Os anos se passaram e todos os sábados estávamos nós, no mesmo lugar, em uma cela especial de uma delegacia. Em 1964 meu pai sairia da prisão. Mas, aí, veio o período do grande medo e ele foi levado para outro lugar. Ele foi considerado um traidor do sistema e, por isso, desapareceram com ele. Ficamos sem notícias por vários e vários anos. Pensamos que ele estivesse morto. Chorávamos por uma morte. Durante esse período, passamos por diversas dificuldades, sentimos fome, medo, solidão.  Minha mãe começou a fazer macarrão para fora, mas os vizinhos não compravam. Nós éramos da família do traidor. Eu, entrava na adolescência e começava a entender, da pior maneira, o que era o preconceito, o julgamento, os olhares que olhavam, mas não viam. Eu sofri muito durante esse período. O grande medo tomou conta de minha família. Absorveu meu espírito. Mas foi assim pra muita gente. Houveram perseguições, prisões, assassinatos. 

Eu fingi que não escutei essa parte, confesso que me senti um pouco culpado. Eu fazia parte daquela história, eu a vi de perto, mas não me lembrava. E, Rose, não parava de falar:

– Foi quando um dia, enquanto comíamos o macarrão feito por minha mãe, sem molho, é claro, entra um homem pela porta da cozinha. Era meu pai, quase irreconhecível. Ele estava ali, bem na minha frente, depois de cinco anos de angústia. Ele não era mais ele. Estava magro, quase raquítico, pálido, careca, haviam várias cicatrizes pelo corpo, um olho estava caído. Sua roupa era a mesma, desde a última vez que o vi. Claro que estava velha, surrada, rasgada. Corremos, todos, para abraçá-lo. Era ele, em carne e osso, mais osso do que carne, em nossa casa. No abraço, senti sua roupa esfarelar. Foi triste a sensação. Eu chorei sozinha depois. Naquele dia perguntamos a ele o que tinha acontecido. Ele, com aquela serenidade de sempre, nos disse: “- Vocês nunca vão saber.” Ele não precisava falar, a gente já sabia. Sentíamos. O sofrimento estava estampado em seu rosto magro, escondido por atrás de uma barba imensa. Olho pra ele e falo: “E que barba é essa, pai?”. Ele, com um sorriso de amor, responde: “Acho que vou me tornar barbeiro!”. Todos nós caímos na risada. Ríamos por fora, por dentro foi um misto de felicidade e dor, que dominava cada um de nós. A parte cômica foi que ele se tornou mesmo um barbeiro. Foi assim que começou sua nova profissão. Ele foi escolhido por ela. Por anos, ele foi o melhor barbeiro do bairro. Sua barbearia estava sempre cheia. Por horas, ele conversava com seus clientes. Era bonito o ver trabalhando. Depois disso, minha mãe adoeceu. Teve parkinson. Acho que foi o medo que a paralisou.

Agora senti um pouco de raiva. Injusta a acusação. Mas, tudo bem. Fazia um pouco de sentido dentro do contexto apresentado. E ela continuava:

– Ela morreu quinze anos depois da descoberta da doença. Meu pai teve um infarto fulminante, dois anos depois. O triste é saber que os resquícios do grande medo ainda estão por aí.  E agora, vejo que ele renasceu, cresceu e está mais vivo do que nunca. Ele governa.  

Sua fala me desconsertou, eu, sem graça, tento mudar de assunto, perguntando:

– Mas, então, o que a senhora faz aqui, no meio dessa praça, sozinha, com esse cartaz na mão? Volto a perguntar.

– Eu observo o ciclo da vida, vejo o medo que se renova, vejo pessoas andando sempre desordenadas, vejo a violência, o preconceito, a falta de diálogo, de tolerância. Eu sinto o discurso opressor. Eu sou a prova viva que o grande medo voltou.

De repente, Rose olhou dentro dos meus olhos e, com um olhar que me enxergava, falou:

– E eu sei quem você é.

Naquele momento, não tive dúvida, ela me descobriu, mas, mais que depressa, começo a falar:

– Sim, eu sou, o… o…. Eurípedes. Falo sem me lembrar, corretamente, do nome que tinha me dado.  

– Não, você não é nem o Eurídepes, nem o Euclídes, aliás, você mente mal demais. Você é o grande Medo. Medo com letra maiúscula, o medo que conheci de perto, senti, vivi, convivi.

Como podia isso? Fui descoberto! Quase sem conseguir falar, eu pergunto:

– Co, co, co, como você sabe? Quem é você? Falo em estado de choque. O gaguejar já havia se tornado parte de mim.

Eu sou a velha e acabada História. Estou aqui, em carne e osso, assim como você. Sou aquela senhora que ninguém mais conhece. Eles me abandonaram, passaram por cima de mim. Eu, sou uma velha senhora sentada sozinha num banco de uma praça. Você, Medo, é um jovem rapaz, bonito, esbelto, poderoso. Somos a representação perfeita do tempo, do tempo vivido e recontado no presente. Muito prazer!

Fico mudo diante a descoberta. Ela me reconheceu, sabia quem eu era. Eu, não tinha a menor ideia de quem era ela até então, apesar de ter convivido com ela por muitos anos e muitos anos. Em silêncio, ela se levanta, pega o cartaz e sai caminhando lentamente pela praça, sem dizer mais uma só palavra. Seu andar de velha me causou uma emoção nunca sentida. Quando percebi, lágrimas saíam de meus olhos. Eu estava chorando. Naquele momento as palavras no cartaz ganharam sentido, e o choro se tornou mais forte, alto, desesperador. As palavras ressoavam em minha cabeça como os ecos cortante do silêncio: “Eu sou a repetição malfeita do passado”. Assim como a História, eu também era uma repetição malfeita do passado. Eu me reconheci naquelas palavras. Era eu naquele cartaz. Chorando, fiquei ali, estático sentado sozinho no banco daquela praça. Nosso encontrou terminou assim. Eu ainda não sei por quanto tempo andarei jovem e forte por aí. Mas, depois de minha experiência com a História, de alguma forma, não sou mais o mesmo. Eu não quero ser o velho escondido em um corpo novo. Mas, infelizmente, isso não depende de mim. De qualquer modo, por enquanto, eu ando solto e espero que um dia a gente possa se encontrar. Podemos falar sobre a História, quem sabe você pode me contar algo melhor sobre ela.

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