#Imersão: Girassóis, índias e memórias

É engraçado como nossas histórias são ciclos que não se fecham, ressignificam-se. Era para ser apenas uma roda de conversa com mulheres indígenas Maxakali em Moeda, mas se transformou em um momento nostálgico, repleto de sentido e de fé.

O encontro começou com música, um canto que falava sobre um gavião que perdeu sua casa diante o desmatamento provocado pelo homem branco. A música era a representação do choro do gavião. Chorei com o canto, e com o choro.

Diante aquela cultura, penso por um minuto em quem são os verdadeiros donos de “nossa” terra. Sinto vergonha. Além da vergonha inevitável, impressiono-me com a fala e com o olhar das índias. Era uma fala que representava um olhar que olhava, que enxergava. Era um retrato diferente da natureza, era o outro lado, era a própria natureza que falava. Palavras e olhar não se dissociavam no espaço, mas refletiam uma forma específica de estar no mundo, dançar com a natureza, brincar com ela, ser ela.

Ao final da roda de conversa, eu já estava imersa em uma nova tentativa de olhar, quando começou a exposição dos artesanatos produzidos por elas. Foi aí que a história se refez, trazendo uma lembrança lembrada, marcada na pele, com cheiro, sorriso e lágrima. O artesanato trouxe a história de uma semente que se transformou em tatuagem. Trouxe, de certa forma, a minha história, a recordação de um girassol gêmeo-infinito, uma história de amor, fé e, sobretudo, de esperança.

Essa história começa em 2012, quando minha filha chega da escola com a agenda escolar do ano.

“- Vó, o que é isso?”, pergunta ela para minha mãe.

Minha mãe, rapidamente, responde:

“- São sementes! De girassol!”.

No início, eram apenas sementes. Mas, como toda semente encontra a terra, essas precisavam desse encontro. Claro que minha mãe cuidaria disso. Ela era uma mulher que gostava de plantar. Suas mãos conversavam com a terra úmida. Era um movimento dançante que propiciava uma conversa. Não sei dizer ao certo que conversa era aquele, mas lembro-me de passar horas e horas com ela, observando-a plantar. Vi crescer um pé de manga, de limão, caqui, figo, pitanga, amora, uva. Fora a salsa, a cebolinha, a alface e a couve. Suas plantas eram especiais. Acho que cada uma delas sentia o carinho que recebia. Era bonito vê-la cuidar de sua plantação. Havia respeito ali. Da mesma forma em que ela se doava, as plantas retribuíam o cuidado através de frutos, flores e folhas, através do alimento para o físico e para a alma.

Diante aquelas sementes, minha mãe falou:

“- Vamos plantá-las!”.

Aquela tarde foi dedicada a isso, ao plantio das sementes. As duas prepararam a terra e esconderam as sementes. Minha mãe, num ritual semântico, disse a minha filha:

“- Agora temos que conversar com elas. Vamos falar, ‘nasce sementinha’, ‘nasce sementinha’!”, e minha filha repetia as palavras com afeto e com o desejo de vê-la crescer. Confesso que também repeti as palavras mentalmente, quando cheguei do trabalho e as vi ali, conversando com a natureza.

Todos os dias o ritual se repetia:

“- Nasce sementinha! Nasce sementinha!”, diziam minha mãe e minha filha.

Um dia, no meio do ritual, eis que elas observaram um verdinho sair da terra molhada. Era o girassol que explodia para a vida. Minha filha, nesse dia, esperou-me chegar do trabalho da janela da sala. Ao me ver, gritava:

“- Mãe, mãe, mãe, olha! Olha! Olha! O girassol está nascendo”.

Foi bonito ver o nascimento através de seus olhos. Era o mesmo olhar de respeito, de amor e de fé que vi nas índias, anos e anos depois.

O girassol crescia aos poucos. Ele nos ensinava que o tempo da natureza era diferente do nosso. Nós não sabíamos, ainda, o que sairia dali. Nem sabíamos se flores ele nos daria.

Foi quando um dia, da janela, minha filha gritou ao me ver chegar do trabalho:

“- Mãe, mãe, mãe, tem um botão! Vai nascer um girassol.”

Eu, com os olhos maranhados de água, me surpreendo com a felicidade dela. Ela tinha aprendido a ver a natureza, senti-la. Chorei com a relação que se estabelecia ali.   

E o girassol se desenvolvia. O botão crescia em seu tempo. Minha filha, também. Até que, um dia, ele explodiu. As pétalas começaram a sair como se estivessem sendo expulsas para a vida. Eram muitas e muitas pétalas, ainda sem forma. Um dia, da janela, minha filha gritou ao me ver chegar:

“-  Mãe, mãe, mãe, ele é gêmeo e tem um infinito nele!”.

Eu, mais que depressa, pergunto:

“- Gêmeo? Com infinito? Como assim?”.

Foi quando abri o portão e me deparei com ele. Era uma grande flor amarela, mas não se parecia com um girassol. Não era redondo. Eram muitas e muitas pétalas, um pouco sem forma. Chego mais perto. Olho e vejo. Sim, era um girassol gêmeo. Olho mais de perto e, sim, ele tinha um infinito dentro dele. Fico ali parada, diante aquela flor imensa, imersa. Eu estava estatizada, perplexa com o que via. Era mesmo um girassol gêmeo-infinito. Perdi-me no meu olhar. Ele era, simplesmente, ele. Ele era único, era gêmeo e infinito.

E foi assim que o girassol gêmeo-infinito nasceu e se transformou em história. Ele foi uma resposta da natureza ao amor, ao respeito de minha mãe e de minha filha. Ele foi reciprocidade. Presente. Nós vivemos esse presente por muitos e muitos dias. Foram dias de amor e de fé.

O girassol gêmeo-infinito se foi, minha mãe também. A história não.

Hoje, o girassol-infinito marca minha pele, tornou-se tatuagem, uma forma de lembrança. Mas onde essa história se junta ao artesanato das índias? Eram muitas e muitas peças. Cores que se misturavam, reproduziam.

No meio de tantos e tantos colares, vejo um girassol. Mais que depressa pego-o, um pouco assustada. A índia, vira pra mim e fala:

“- Leve esse. É proteção pra você.”

Olho para ela, meio assustada e sem falar nada, entrego-a o dinheiro, para comprar uma peça sem preço, pelo menos para mim.

Coloco o colar e ele me traz toda a memória relatada aqui. A índia, vendo minha emoção com o colar, pede para tirar uma foto. Tiramos a foto e ela me fala:

“- Esse colar nasceu pra você! Viu que está no centro de seu coração?”.

Sorri, sem falar uma palavra. Ele estava no centro de meu peito e dali ele ativou toda essa memória. Imergi nas lembranças e lembrei que, antes de qualquer coisa, nós somos natureza, somos reciprocidade. Viver é também mergulhar nas oportunidades que a vida nos dá, nas lembranças, nos encontros. Recebemos aquilo que doamos. Elas receberam um girassol gêmeo-infinito. E hoje tenho um grande girassol amarelo iluminando o centro do meu peito.  

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10 Comments

  1. Eu não sei o que dizer…. Na verdade, me sinto imersa em tamanha história de amor. Estou aqui a procura de uma palavra para concluir e definir, o que sinto nesse momento. E, simplesmente é GRATIDÃO. Gratidão, pela oportunidade única de fazer parte de vocês! Parte de um amor puro, singelo e abençoado.

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  2. Lindo, Dani!
    Emocianada aqui ao te ver contar a história do girassol gêmeo, ao presentificar as mãos da sua mãe, que conversava também com linhas, agulhas e tramas e nos presenteou com estandartes de um amor infinito. Embalei ontem o que ela fez pra Laura, quando ela nasceu. 😭🥰

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  3. Olá…. engraçado como a vida é, ando aqui “perdido” na internet à procura de como se escreve Girassol no dialecto Maxakali, e pesquisa para cá pesquisa para lá vim aqui parar, é sempre bom ler historias de amor ligadas à natureza aos ensinamentos e aprendizados de alguém… vida real em boas palavras, em um mundo tão cheio de ecrãs e irreal, gostei de saber que um dos Girassóis de sua vida (filha) teve oportunidade de ter esse momento e aprendizado verdadeiro e ancestral com outro Girassol (sua Mãe).

    Estava na esperança de ver escrita a palavra Girassol em Maxakali e em vez de abandonar a sua pagina frustrado, saí de coração cheio.

    Nunca tinha visto um infinito gémeo girassol, obrigado por partilhar esta historia tão bonita com o mundo, gostei muito de ler.
    Em especial gostei também desta sua frase “O girassol gêmeo-infinito se foi, minha mãe também. A história não.”
    Os meus sentimentos, a minha também já se foi e 2 anos depois o meu Pai seguiu o mesmo caminho.

    Estou certo que sua filha também nunca esquecerá, farto-me de falar para os meus amigos para darem mais atenção ao filhos e menos ecrãs, mas ninguém se importa… e um dia mais tarde o que eles e os filhos terão para recordar será absolutamente nada, porque a realidade é essa mesmo, os bens materiais desaparecem e ficam lá para trás na historia da nossa vida, MAS as historias reais e vividas por cada um de nós ficará para sempre na nossa memoria, pelo menos enquanto ela estiver a funcionar claro.

    Mais uma vez obrigado pela partilha 🙂

    Se o meu português parecer estranho, fica a nota que eu sou de Portugal e aqui a escrita é um pouco diferente (dizem), para mim não é, percebo perfeitamente o que se escreve por aí, mas como a maioria dos Brasileiros com quem troco mensagens costuma “reclamar” que não percebem, daí o meu pedido de desculpa se algo não for assim tão fácil de compreender.

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    1. Você não faz ideia a alegria que senti lendo sua mensagem. As coisas acontecem por um motivo e suas palavras chegam como um bálsamo de esperança. Uma chama que me convoca a continuar escrevendo! Nós somos a história. E a história é feita de palavras. Por nós: que tocamos e somos tocados! Obrigada por isso. Estive morando em Portugal ano passado. Fui fazer uma parte do doutorado. Pretendo voltar. Amo esse lugar! Obrigada mais uma vez!

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