#Imersão: Armários velhos e des-pedaços

É engraçado como as oportunidades aparecem e, sem você perceber, você se encontra imersa em seu próprio desejo. Realizar um desejo é, de alguma forma, trabalhar nele mentalmente, planejar, detalhe por detalhe, idealiza-lo. Desejar é mobilizar-se.  Às vezes, o desejo se apresenta como o idealizado, totalmente ou parcialmente. Mas, em raríssimas vezes, ele supera muito a nossa expectativa. Quando isso, efetivamente, acontece, enxergamos a essência do nosso trabalho ali, trabalho mental, esforça laborioso e, consequentemente, transformamos o mundo e a nós mesmos. Essa pequena introdução é para falar sobre o assunto do meu texto de hoje: armários velhos e des-pedaços.  

Essa semana recebi uma ligação inusitada. Uma das professoras que me orientam aqui em Coimbra, Prof. Lisete Mônico, entra em contato comigo para me pedir um favor. Ela teria um compromisso na quinta-feira, dia 22 de novembro, e me pedia para substituí-la em uma aula na Universidade. Era uma matéria a qual já lecionei: Metodologia de Pesquisa. Algo simples, quase trivial pra quem está no doutorado. Ela me disse, ainda, que eu poderia falar sobre o que quisesse, seria apenas uma aula, coisa simples. Bom, nem tão simples assim quando se trata de um desejo a se realizar. Desejo que mal sabia eu superaria muito minha expectativa.

Assim, aceitei, com muita felicidade, o convite! No período em que estou aqui já dei duas conferências para os alunos do Mestrado Europeu – Erasmus – o que também foi muito especial, e cabe um relato depois. Mas, falar sobre minha tese é fácil, eu a domino cem por cento. Já a sala de aula tem outros desafios, tem uma magia, um encanto, é um verdadeiro desafio. A sala e os alunos nos colocam frente ao inesperado, e nele, você precisa encontrar alternativas rápidas, buscar, em você mesma, soluções para o silêncio. De algum jeito, dar aula é algo diferente, me faz mergulhar em mundos que nem lembro que existem dentro de mim. 

Bom, preparei uma aula sobre “Ação Profissional e Metodologia: aplicabilidade e reflexões possíveis”, ou seja, como os alunos podem aplicar os diversos métodos na prática, nada de muito distante.

Chovia muito em Coimbra no dia da aula.  Era uma chuva fria, ventada.  Chego molhada à universidade, meus pés congelavam dentro das botas. Eu já conhecia a sala. Tratava-se do auditório da Universidade de Psicologia. As aulas teóricas acontecem nesse auditório, pois as turmas aqui são grandes. É um auditório lindo, antigo, imponente.  Realmente, muito mais do que havia desejado. 

Entro no auditório, não havia ninguém.  Ligo o computador, preparo a apresentação e espero a chegada de algum aluno.  Por um momento pensei que não chegaria ninguém. Além da chuva ventada, era época de exames.

Foi quando, de repente, entram algumas pessoas na sala.  Aos poucos chegaram outras e mais outras. Na hora marcada havia uns 50 alunos. Comecei a falar, a falar e a falar. Foquei em métodos qualitativos de pesquisa, pois queria apresentar possibilidades diversas àqueles alunos, tendo em vista que aqui eles têm uma linha quantitativa forte. Falei sobre a complexidade do objeto de estudo nas ciências humanas: o ser humano. Abordei sobre nossos desafios em apreender a realidade do outro. Expliquei a metodologia de História de Vida e como ela pode ser transformadora. Nessa hora me lembrei de dois filmes importantes: Os Escritores da Liberdade e Histórias Cruzadas (que em Portugal chama-se “As serviçais”), ambos apresentam a potencialidade dessa metodologia, como forma de transformação da realidade e dos sujeitos. Falei também sobre O Diário de Anne Frank, e como o diário ajudou a pequena Anne a sobreviver dentro do caos, e, hoje, nos enche de emoção ao conhecer a história dela. Falei sobre a importância das entrevistas, individuais e coletivas, mas, sobretudo, me inspirei na antropologia para falar sobre o olhar e o ouvir, movida por Lévi-Strauss e Roberto Cardosos de Oliveira.  Eu falava dos outros, quando, de repente, me lembrei da história de um garoto, em que eu estava lá. Relatei aos alunos. 

Era janeiro de 2003, Belo Horizonte sofria com a maior enchente e tragédia da história das áreas de risco geológico.  Nove crianças, de uma mesma família, haviam morrido. Devido à tragédia, o prefeito pediu que retirasse, das áreas de ricos, todas as pessoas que estivessem com a moradia ameaçada de desabamento. As famílias eram levadas emergencialmente para hotéis da cidade e, posteriormente, para abrigos municipais. Eu trabalhava na Gerência de Promoção e Proteção Social, da Prefeitura de Belo Horizonte, e tive a oportunidade de acompanhar de perto o trabalho com essas famílias. Foram mais de dois mil desabrigados na época, eram muitas e muitas famílias. Cada uma era retirada de sua casa e os móveis levados a locais específicos, geralmente quadras cobertas de escolas públicas. Dos hotéis, as famílias eram encaminhadas para os abrigos municipais Granja de Freitas e Pompeia.  Geralmente, quando surgia uma vaga em um dos abrigos, pegávamos um membro da família, levava-o para reconhecer os móveis e depois encaminhávamos para os abrigos, onde as famílias permaneceriam até serem contempladas por um auxílio moradia.  

Certo dia, chego pra trabalhar e vejo que a programação era a desocupação do Hotel São Cristóvão, que ficava ao lado da rodoviária. Sigo, junto com o motorista da Kombi, pra cumprir minha tarefa. Chegando lá, pego a lista das famílias e convoco um membro de cada uma delas para me acompanhar até a escola e fazer o reconhecimento dos móveis.  Quando vejo, faltava uma família. Converso com a assistente social responsável e ela me dirige até um determinado quarto.  Bato à porta, e mais que depressa um menino, que aparentava uns 7 anos, a abre.  Pergunto sobre a mãe dele, ele me convida a entrar. A mãe trocava a frauda de uma criança que me parecia recém-nascida. Outros dois choravam dentro de um berço, eram gêmeos, outros três brincavam no chão.  Primeiro a pergunto se ela precisava de ajuda, aquela situação não era boa. Ela nega, e, com um lindo sorriso no rosto, me diz estar acostumada. Sim, ela tinha sete filhos e o mais velho era aquele garoto. Pergunto quem vai até à escola. O menino me responde prontamente: “Eu!”, levantando o dedo indicador. Bem, isso não estava no protocolo, uma criança ir desacompanhada.  Mas, como nem tudo na vida pode seguir um protocolo, muito menos o aqui e o agora, depois de muita conversa com a mãe e com a assistente social responsável pelo hotel, aceitei que o menino fosse até a escola, claro que eu o acompanharia nesse processo. 

 Na kombi, conversando com o menino pude perceber que era uma criança de 9 anos, com corpo de 7 e cabeça de 50.  Sim, ele era novo, mas algo nele era velho.  

Chegamos à escola e as famílias foram em busca de seus pertences.  Era um galpão imenso, lotado de móveis. Cada um foi, aos poucos, reconhecendo seus objetos. Muitos móveis estavam sujos de lama, outros molhados, outros, praticamente, destruídos.  Foi quando, de repente, aquele pequeno solta um grito: “Achei!”. Quando chego perto, percebo que era um armário de cozinha daqueles de ferro, coloridos e antigos.  Na casa de minha avó tinha um armário daquele. Ele olha pra mim e solta um imenso sorriso. Eu, pasma, sorri de volta, um daqueles sorrisos amarelos. Foi quando a técnica responsável pela local, minha colega de profissão, vira e fala: “Isso aí?!  Isso é lixo, vai para o lixo agora. A gente arruma outro pra sua mãe”.  Sim, isso era possível, estávamos recebendo muitas doações. É incrível a capacidade de solidariedade humana em tragédias. O armário tinha molhado com a chuva, enferrujado, descascado, enchido de buracos.  Estava, realmente, muito mal.

Foi quando o menino baixou a cabeça e sentou-se numa escada próxima ao armário. Sento ao lado dele.  Ele segura o choro bravamente, afinal, ele era o responsável pela família naquele momento. Começo a conversar com ele sobre o armário.  Pergunto se ele havia entendido o motivo de darmos outro a eles, pergunto se ele sabe que o outro será novo. Ele olha pra mim, com aquele olhar cinquentão, e me fala: “Quem disse que eu quero outro?”. Aí, eu pergunto: “Por que não?”. Ele responde: “Senhora, minha mãe pediu pra eu buscar o armário.  Esse armário é dela.  Eu quero levar esse”.  E eu falo: “Tá bom. Vamos levar. Você tem razão. Mas, porque você quer tanto esse armário?”. Ele olha fixamente pra mim e me responde: “Você viu a situação da minha mãe? Eu tenho um monte de irmão.  Eu nem sei contar quantos são. Nós não temos país. Nós não temos dinheiro. Minha mãe não pode comprar presente pra gente no Natal, mas ela ganha uma lata de tinta, quando ela pede.  Ela sempre pede uma lata de tinta pra alguém no Natal e a gente pinta o armário. Ganhamos um armário novo. Cada ano é de uma cor.  Se ela não tiver o armário, o que ela vai fazer com a gente no Natal?”. Eu, mais que depressa, me recolho a minha insignificância, engulo meu choro, e levo o armário despedaçado. Mas, naquele momento, não era só ele o despedaçado da história.  

Enfim, contei essa história à turma para demonstrar a complexidade em lidar com o ser humano. O outro é sempre imprevisível, diverso, enigmático. Emocionei contando essa história aos alunos, me emocionei relatando aqui, e acho que sempre vou me emocionar ao lembrar daquele garoto. A imersão na vida dele me fez ver a profissão de uma outra maneira, me fez perceber que, por mais que se tenha um prescrito na atividade, é no real que o trabalho acontece, e lá que a gente tem que estar: ouvindo e olhando, atentamente.  

Bem, mas relatei isso para contar outra história. Após a aula, um aluno veio conversar comigo, na verdade foram dois, mas esse me chamou a atenção. Era um senhor de uns 65 anos.  Ele me perguntou sobre o garoto, sobre o que aconteceu com ele. Eu respondi que não sabia, ele foi para o abrigo com a mãe e com o armário.  Lembro de ter conversado no abrigo sobre a importância do armário para ele.  Mas, meu trabalho havia terminado ali. Eu não sabia mesmo o que tinha acontecido. Aí, ele me falou o quanto aquela história e a aula o havia tocado.  Naquele momento, ele me tocou. Agradei e perguntei o porquê. Ele me fala: “Olha, sou mais velho, já vivi, vi e fiz muita coisa nessa vida. Mas eu nunca tinha parado para pensar o quanto um aramaria furado pode ser importante pra alguém.  Acho que ignorei alguns armários velhos em minha vida”.  E eu, meio sem voz, respondo: “Mas, sempre temos tempo, basta estarmos vivos. Sempre é possível transformar a si mesmo, juntar os des-pedaços”. Ele dá um sorriso, que me lembra o sorriso do menino, agradece, e vai embora.  Eu, fico lá, olhando aquele lindo auditório e pensando em quantos armários despedaçados eu também já ignorei. Despedaçada.  

Olho pra a minha projeção e vejo a seguinte tela:  

Imersão também é isso: conversa entre armários velhos e des-pedaços. 

Referências:

LÉVI-STRAUSS , C. Regarder, Écouter, Lire, Paris: Plon, 1993.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso. O Trabalho do Antropólogo: Olhar, Ouvir, Escrever. REVISTA DE ANTROPOLOGIA , SÃO PAULO, USP, 1996 , v. 39 nº 1.

O diário de Anne Frank. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cX2EpqVBMn8

Histórias Cruzadas Trailer disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Cqn4XN21O1g

Escritores da Liberdade Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lHmw50azNzs

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