#Imersão: A dialética da invisibilidade e a cegueira funcional

Existe uma heroína, de nome Kitty, em X-Men, que tem o poder de ficar invisível. No filme, ela é uma mutante que ganha um status importante, pois consegue entrar nos lugares, e permanecer neles, sem ser percebida. A invisibilidade dela passa pelo desejo em não ser vista. Seria interessante, em vários momentos de nossas vidas, nos tornamos invisíveis. Acho que, pensando poucos minutos, cada um de nós conseguiria dizer pelo menos uma situação em que já quis se tornar invisível. Esse texto poderia ser sobre isso, uma invisibilidade desejada, um superpoder mutante, mas não é.

A invisibilidade que denuncio, aqui, não é mutante, é uma invisibilidade crua, cruel.   A que quero refletir hoje refere-se muito mais a uma visão destruída, a valores deturpados. Invisibilidade de homem, não de herói. Homem não fica invisível, apenas não é notado, aparece na cena como uma negação da visão. Polui o ambiente. Trata-se do não visto, diante o visto, a contradição, uma dialética da invisibilidade, uma cegueira funcional.

Em tempos de tantas imagens, a pergunta de Hamlet se transforma: “Ver ou não ver, eis a questão”. A peça de Shakespeare se ressignifica na contemporaneidade, mas não perde o conceito.

Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e flechas
Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
Ou insurgir-nos contra um mar de provocações
E em luta pôr-lhes fim?
(Hamlet)

Não ser visto é bem diferente de não querer ser visto. É outra a situação. Hoje aconteceu uma coisa um tanto quanto bizarra, que me fez refletir sobre isso. Todo sábado, às oito horas da manhã, faço uma aula particular de yoga no Parque das Mangabeiras. Penso que muitos conhecem o parque. Trata-se de um local grande, público, com vários pontos de recreação, vários mesmos. São diversos locais com mesas fixas. Cada um é, detalhadamente, decorado pela natureza. Há várias possibilidades. Eu e meu professor sempre escolhemos um desses locais para a prática, pois é um momento reflexivo, de conexão, de paz.

Chegamos ao parque no mesmo horário e fomos para um lugar de costume. É um local um pouco afastado, as árvores fazem uma cobertura intensa, mas não impedem a invasão dos raios solares. Num mesmo espaço, há folhas de várias texturas, cores, odores. Nenhuma é igual a outra. Há muitos pássaros, formigas, insetos. Ruídos de diferentes bichos se tornam sonoros, melodias naturais. Sempre peço licença ao entrar. Todos os dias são assim, menos hoje.

Chegamos e começamos a praticar. Quando já tinha mais ou menos uns dez minutos em que estávamos ali, chegam duas senhoras. Sentam-se em uma das mesas, bem ao nosso lado, e começam a conversar. Num primeiro momento, acho estranho, pois elas pararam muito próximas de nós. Tudo bem, o parque é um local público. Certamente elas estavam nos vendo e encontrariam outro lugar para a boa conversa de sábado de manhã. Continuamos a praticar. Eu, achando esquisita a situação, afinal já estávamos lá quando elas chegaram.

Mas elas não se foram. Continuaram a falar como se não estivessem nos vendo. De repente, sinto que elas começam a “arrumar” o ambiente. Abro os olhos e estávamos no meio de mesas cobertas com toalhas vermelhas. Havia muita comida espalhada também. Me vi no meio de um piquenique. O ambiente se transformara.

Continuamos praticando e meu professor sempre dando o comando para eu me concentrar, o que era impossível para uma iniciante, que não conseguia deixar de sentir que estava no meio de uma festa. Respira, Danielle, respira!

Passados uns cinco minutos, chegam mais umas dez pessoas. Elas começam a falar, a falar e a falar. Continuo achando estranho. Até que as pessoas começam a andar bem próximas de nós. Dava pra sentir a proximidade delas. Abro o olho e olho para meu professor. Deixo de sentir que era estranho e começo a achar bizarro. Ele, vendo minha cara (que não estava muito boa), sugere mudarmos de lugar. Não estávamos mais ali fazia um tempo.

Levantei. Olhei para as pessoas. Elas olharam pra mim e não disseram uma só palavra. Era como se nós não existíssemos. Nós não fazíamos parte da cena que elas construíram, idealizaram, mas estávamos lá. Éramos os visíveis invisíveis. Era a dialética da invisibilidade materializada diante o ver e o não ver. A cegueira funcional respondia a necessidade da realização do piquenique. Foi muito ruim, me senti violentada. Fique triste, bem triste mesmo. Mas tudo bem, em silêncio saímos da cena.

Descemos uns 150 metros e encontramos um outro lugar, exatamente como aquele. Haviam vários outros espalhados pelo parque. Ainda deitada, olho as árvores que me cobriam. Vejo uma árvore que parecia invertida. Lembro-me da contradição que havia vivido. Sorri pra ela.

Terminamos a prática e ao voltar para o estacionamento, passamos pelas mesmas pessoas. Elas estavam todas de branco. Talvez buscassem a paz. Espero, de verdade que a tenham encontrado. Foi engraçado porque não senti raiva, senti pena. Sei que é um sentimento horrível de se sentir, mas não teve jeito diante aquilo que presenciava. Acabei me solidarizando por aquelas pessoas. Claro que ainda não estou no nível master, mega, power do meu professor, mas senti paz.

Eu consegui ressignificar o sentimento de invisibilidade, da invisibilidade não desejada, daquela provocada pelo olhar que não olha. O olhar não me viu. Mas, infelizmente essa é uma reprodução do sistema. Violência de um olhar que não enxerga. Vivemos hoje uma cegueira funcional que permite eu continuar vivendo como se nada estivesse acontecendo a meu redor. Vamos fingir que não vemos.

Mas, violência gera violência, e diante a dialética da invisibilidade, da cegueira funcional, a violência cresce, se torna uma resposta ao meio, faz parte do meio, se torna vista. Eu estava praticando yoga, mas poderia estar vendendo droga no parque, poderia estar armada, talvez a resposta seria diferente.

Penso em vários exemplos de nossa cegueira funcional: o varredor de rua que não o desejamos bom dia; o menino pedindo dinheiro no sinal que bate na janela de nosso carro e fingimos não perceber; as “casas” de madeira que crescem pela cidade, moradias no meio da rua; a moça deitada na praça que pede dinheiro para o café; o olho inchado da senhora que trabalha lá em casa, chorou a noite toda, mas eu não vi; o filho que bebe na festa, mas eu estava cansada demais para esperá-lo chegar em casa; a fixação do bebe com o celular, que dá um sossego danado com o desenho (pouco) animado; o colega de trabalho que perdeu alguém, mas eu estava ocupada demais com minhas coisas; o sonho que um amigo realizou, mas não consegui estar presente porque não era meu sonho; um filho que não pergunta como a mãe está; uma mãe que não pergunta como o filho está; um vídeo que assisto sem se preocupar se atrapalho quem está a meu lado; a música que toca até duas da manhã; a bebida que compro para adolescentes de 14 anos…

Acho que não tenho como concluir esse texto. Acho que foi somente um chamado a uma reflexão. O fato é que a invisibilidade está ai! Fazemos parte disso. Mas você já esteve do outro lado? Já se sentiu invisível? Talvez essa seja a primeira reflexão a ser feita.

Para finalizar quero compartilhar uma situação contrária, que vivenciei há um tempo atrás, uma resposta recebida que poderia ter sido diferente:

Eu voltava da PUC a noite, eram por volta de 22:45 hs. Paro no sinal embaixo do viaduto da Avenida dos Andradas com rua Araguari (quando não era acesso livre como é hoje). Vários e vários moradores de rua habitam ali, cuidando de seus carrinhos de papelão. Claro que eu estava com o vidro do carro fechado, o medo de ser assaltada me consumia. Eu, olhando de um lado para o outro, atenta ao movimento, vejo um homem se aproximar do vidro do meu carro. Ele bate no vidro fechado. Olho pra ele e, sem pensar muito, abro o vidro. Olho pra ele, sem o anteparo do vidro, ele olha pra mim e me pede um “trocado”. Respondo que não tinha, dou um sorriso e fecho o vidro. Ele continuou ali, olhando pra mim. Foi quando ele bateu no vidro novamente. Eu, tendo a certeza que seria assaltada naquele momento, pois minha bolsa estava sobre o banco, abro o vidro. Ele, mais que depressa, me fala: “Obrigado por ter aberto. Seu sorriso é lindo”. Fico, ali, paralisada até escutar a buzina do carro de traz. Arranco e vou embora com minha bolsa de couro, cheia de trocados.  

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4 Comments

  1. Eu fiquei irritada só de imaginar a cena. Para mim, a situação do parque é reflexo do tipo de sociedade que construímos, individualista, egoica, abusiva, mal educada. Eu acredito que essas pessoas escolheram ignorar vocês para satisfazer o próprio desejo de estar no lugar que vocês estavam. É como aquela figura que levanta o celular na sua frente no espetáculo e começa a filmar, sabe? Eu não consigo deixar esse tipo de coisa passar. Sempre digo: “com licença, seu celular, está me atrapalhando”. Ou no supermercado, quando vejo alguém que já esvaziou seu carrinho deixá-lo em frente à outro carro: “com licença, olha ali o lugar certo de colocar o carrinho, viu?”. Fiquei com tanta raiva dessas senhoras de branco do piquenique que me deu vontade de ir lá num sábado de manhã só para ver se encontro elas! Kkkkk enfim, se fosse eu não teria saído, teria feito elas saírem. Mas poderia perder meu dia e passar raiva. Isto já aconteceu algumas vezes. Então, talvez vocês é que estejam certos de terem ido para outro lugar. Mas eu simplesmente não consigo fazer isso. Minha amiga diz que eu tenho a alma belicosa. Pode ser. Eu só sei que eu não me controlo diante de gente que finge – acho que é aqui que discordamos – que não te vê. Conclusão: nunca me leve para meditar com você! Kkkkkk beijão!

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    1. Kkkkkkk Adorei!!! Mas to fazendo yoga pra perder um pouco minha alma belicosa… também tenho! 🙈 Fiquei mal o dia inteiro, sem saber se deveria ter dito alguma coisa. Em outra circunstância também diria. Essa foi a violência que falei no texto. Foi tão agressivo que gerou silêncio e isso foi a pior parte. Mas vem meditar comigo sim! Tá convidada! 🌻🙏🏼

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