Estou aqui, de volta, pulando alguns textos que queria ter apresentado antes deste. Sim, não seria esse meu segundo texto da série #Imersão, mas, como meu processo é complexo, a linha que separa o planejamento e o inesperado é tênue, pra não dizer inexistente. O motivo de pular etapas é exatamente para ressaltar o inesperado da vida. Às vezes, as coisas simplesmente acontecem. É isso que vou dividir com vocês hoje, meu encontro com o inesperado.
Hoje, sábado, 17 de outubro de 2018, eu estava um pouco entediada, querendo fugir da escrita de minha tese. Confesso que imergir na escrita acadêmica tem me deixado um pouco louca. Em minha loucura, ou sanidade momentânea, pego meu celular e começo a procurar atrações para o final de semana em Coimbra. Mexo, desesperadamente, a procura de algo que me tirasse do planejamento. Ai, me deparo com um festival chamado “Linha de Fuga”. Ufa! Um nome sugestivo! Afinal era exatamente o que eu estava procurando: uma linha de fuga.
Entro na página do evento e começo a ler sobre. De imediato, me identifico com as temáticas e com a abordagem das atividades. Tratava-se de um “laboratório e festival internacional de artes performativas, com apresentação de espetáculos em vários locais da cidade, […] promovendo o encontro entre artistas nacionais e estrangeiros para intercâmbio de práticas artísticas. Cada participante do Laboratório Linha de Fuga é desafiado a partilhar um trabalho em processo […]O objetivo é promover o confronto de práticas artísticas, num processo de trabalho coletivo e participado, que se desenvolverá num campo de experimentação, aprendizagem e partilha de conhecimentos (www.linhadega.pt).
Vejo que teriam atividades, de dança, gratuitas, à tarde. Como me interesso muito pela dança, mais que depressa, me programo para ir. Mas, como disse no início, nem tudo na vida é planejamento. Acabo me entretendo com as atividades domésticas e atraso-me para sair de cada, perdendo a apresentação dançante. Olho a programação e observo que teria a exibição de um filme “As Sete Mil Portas”, de Tiago Cravidão (Largo Filmes). Sem saber nada sobre o filme, ou sobre o diretor, saio de casa em busca de minha sanidade insana.
Vejo que teriam atividades, de dança, gratuitas, à tarde. Como me interesso muito pela dança, mais que depressa, me programo para ir. Mas, como disse no início, nem tudo na vida é planejamento. Acabo me entretendo com as atividades domésticas e atraso-me para sair de cada, perdendo a apresentação dançante. Olho a programação e observo que teria a exibição de um filme “As Sete Mil Portas”, de Tiago Cravidão (Largo Filmes). Sem saber nada sobre o filme, ou sobre o diretor, saio de casa em busca de minha sanidade insana.
Chego em um local lindo, nas instalações do antigo Grêmio Operário de Coimbra, ao lado da Sé Velha (essa “igrejinha” abaixo, o prédio ficava bem ao lado desse edifício branco). Isso, por si só, já valeu a saída.

Estava um pouco atrasada e, quando entro na sala, o filme já ia começar. Parecia que o diretor tinha acabado de falar algumas palavras, mas infelizmente não o escutei. Assim, continuava não sabendo do que se tratava.
O filme começa. Era um silêncio mórbido, tanto das pessoas na plateia, quanto do próprio filme. A primeira cena trazia uma senhora, em um hospital, trabalhando. Ela manuseava um material cirúrgico. Separava-o e arrumava-o cuidadosamente. A cena me chamou muita atenção. Era uma pessoa que trabalhava em silêncio, solitária. E assim o filme se desenvolve, dentro de um hospital. Cada cena apresentava, cuidadosamente, um trabalhador daquele local. O filme trazia detalhes, trazia rostos, corpos, movimento, repetição, inovação. Eram trabalhos simples, mecânicos: mulheres separando a roupa, homens tirando a roupa da máquina de lavar, outros a passando, outros a dobrando, outros separando o material cirúrgico, outros o embalando, outros fazendo manutenção das máquinas e assim por diante.
O filme era basicamente isso, mas, como isso, de básico não tem nada, imergi na profundidade do inesperado encontro com “As sete mil portas”. Enquanto o filme se desenrolava, mergulhei em cada cena. Foi um mergulho profundo, doloroso, solitário, angustiante, sem música. Sim, o filme não tinha música (ou eu não a percebi), mas ele apresentava a própria melodia da vida dos trabalhadores. Os corpos dançavam no mundo do trabalho, ainda que em silêncio.
O filme […] põe “o hospital a nu: os espaços, os gestos, os sons e as personagens que estão aquém dos discursos que capturam na maioria das vezes o olhar sobre este hospital”.
(http://campeaoprovincias.pt/noticia/tiago-cravidao-apresenta-as-7-000-portas-do-chuc)
Acabei conhecendo um hospital desconhecido. Tratava-se da contradição entre um discurso vultuoso, grande, imponente do aparente e um discurso simples, humilde, precário do trabalho invisível. Era da dialética do mundo do trabalho representada em cena, em arte.
Deparei e pude vivenciar conceitos importantes pra nós, clínicos do trabalho. Senti a angústia do trabalho prescrito, repetitivo, rígido, mas vi a leveza, a possibilidade, a busca de caminhos diferentes na execução das tarefas: viva o trabalho real, viva o vazio de normas. Senti o desconforto da rotina (tão bem retratada por Sennett, em a Corrosão do Caráter, de 1998). Você já se imaginou, o dia inteiro, dobrando roupas? Isso mesmo, NÃO, então não reclame de sua “falsa” ou “singela” rotina. Senti, no filme, o isolamento do trabalhador, o trabalho solitário. E, mais uma vez, as contradições do mundo do trabalho se escancararam.
As pessoas estavam ali, trabalhando, mas ao mesmo tempo não estavam. Em muitos momentos eu queria saber o que pensava cada uma delas, de onde elas eram, para onde elas iam. Saí do filme com várias perguntas, muitas, sobre mim mesma, sobre minha relação com o trabalho, minha relação com o outro. O filme mexeu comigo de alguma forma (ou de diversas maneiras), de uma forma inesperada, tanto que estou aqui, escrevendo, elaborando e reelaborando meu pensamento, dividindo com vocês essa minha imersão na vida de trabalhadores invisíveis, buscando uma forma de re-exitir.
Terminando o filme eu estava lá, sentada, perplexa com o que eu tinha acabado de assistir. Na vida nada é por acaso, ou o acaso é o que nos traz o inesperado, o belo e o ético. Sejamos acaso! Deparei-me com a surpresa mais surpreendente que poderia vivenciar nesse sábado frio, um filme que aqueceria minha alma, inquietaria minha mente.
Depois, tive a oportunidade de conversar um pouco com Tiago Cravidão. Ele me disse que ficou dois anos no hospital fazendo as filmagens no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Na conversa, eu pude perceber sua busca pela subjetividade do trabalhador, pela compreensão do sentido e do real do trabalho. Ele me chamou a atenção para algo que não havia percebido diante a magnitude do filme (mas não menos importante): “Você reparou no crachá da senhora que inicia o filme?” Eu respondi que não. E ele continua: “Ela, já senhora, ainda usava o crachá com a foto de quando foi admitida no hospital, moça ainda”. Eram anos e anos na mesma função, mas que se faz diferente em seu processo subjetivo de vir a ser: ela era aquela menina-moça, mas aquela menina-moça não era mais ela.
Infelizmente o filme ainda não está disponível na internet. “As sete mil portas” é um filme extremamente profundo, de Tiago Cravidão, no qual o diretor conseguiu absorver a complexidade do mundo do trabalho, de forma poética, ética e estética. Ele apreendeu subjetividades que se constroem no cotidiano de um trabalho invisível, porém material, concreto, duro. Trata-se de um trabalhador que está ali, mas não está, não é visto por nós, nem pelo sistema. Uma boa reflexão sobre um sistema repleto de senhores e escravos.
Assim, em nome de todos os trabalhadores que ali estiveram retratados, agradeço ao diretor por tornar esses sujeitos visíveis e, nesse processo, jogar um pouco de luz em nosso próprio processo subjetivo (e de re-existência) dentro desse sistema.
Mais informações sobre obras do diretor: http://linhadefuga.pt/laboratorio/participantes/tiago-cravidao/