#Imersão: O Despertar na Vida Líquida

Algumas pessoas têm me perguntado como é o processo de um doutoramento sanduíche, então decidi escrever sobre isso: sobre meu processo de imersão.

Sempre fui resistente àqueles blogs nos quais as pessoas colocam suas experiências como se fossem as únicas. Elas não são! Existe um lugar comum onde nossas experiências se encontram, mas, mesmo assim, existe uma singularidade em cada uma delas. É isso que atrai. É nessa singularidade atrativa que procurarei apoiar minha escrita, demonstrando o resultado de minha imersão. Não se trata de nada teoricamente construído, mas de minha experiência subjetiva, particular.

Imersão, segundo o dicionário on line, significa “ação ou efeito de imergir(-se); ato ou resultado do processo de mergulhar (alguma coisa) em um líquido”. É exatamente isso que pretendo mostrar, meu processo de mergulho no conhecimento, na escrita, e, muito mais que isso, meu processo de mergulho em minha própria vida.

Buscarei apresentar, nesse primeiro texto, meu despertar para a vida, que acabei a descobrindo “líquida”. Segundo Bauman (2009) “a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante” (BAUMAN, 2009, p. 8). Assim vivemos, e isso não é nada novo. Mas, realmente conseguimos perceber isso? Nós conseguimos nos enxergar nesse processo? Eu penso que não, pelo menos eu não via isso, não com tanta clareza. Por isso utilizei o termo “despertar”. Parece que eu dormia, acordada, em minha própria vida.   

Para começar, vou falar rapidamente do meu processo inicial. Quando ingressei no doutorado, me desliguei da docência para ter mais tempo de me dedicar a um trabalho exclusivamente meu. Trabalho no sentido filosófico da palavra, aquele definido por Marx (1844; 2004) como ontológico, ato de transformar o mundo e a si mesmo, criar e criar-se. Mas, o mundo gira, e, nessas voltas, a vida nos enrola. A vida concreta me trouxe outros desafios aos quais tive que me dedicar, muitas questões de saúde apareceram. A dedicação do meu tempo foi necessária a elas. Com isso, tive que me afastar, um pouco, do grande trabalho a que me propunha naquele momento, o doutorado.  

Mas, tudo é desafio. Talvez o nosso grande desafio seja compreender os pequenos e cotidianos desafios impostos pela vida. E neles, conseguir manter-se um sujeito desejante. Não quero parecer clichê, mas, já sendo, muitas vezes não sabemos do poder de nosso desejo.  Desejo é aquilo que nos mobiliza, nos impulsiona, pulsiona.

Diante meu desejo em criar, em trabalhar, fui impulsionada a planejar minha mobilidade no doutorado. Eu sabia de minha dificuldade em construir, transformar e ser transformada, dentro do contexto que vivia, dentro do contexto em que a maioria das pessoas vivem. Eu sabia das dificuldades em conciliar a escrita de uma tese com todas as tarefas do meu dia-a-dia.

Ficar, exclusivamente, por conta de pesquisar e escrever me parecia algo distante, mas era uma grande parte do meu desejo. Talvez fosse “o” desejo. Daí, fiz contato com o coordenador do doutoramento da Universidade de Coimbra. Mandei-lhe um e-mail relatando, brevemente, minha trajetória, minha pesquisa e, principalmente, meu desejo. Ele me encaminhou para conversar com a coordenadora do mestrado e doutorado europeu. Após trocar alguns e-mails com ela, recebi uma carta convite, na qual ela aceitava em me auxiliar na cri-ação de minha pesquisa, juntamente com meu orientador, é claro.  

Agora estou aqui, em Coimbra, Portugal. Confesso que nunca pensei em viver uma experiência como essa: extraordinária. Trata-se de uma verdadeira imersão ao conhecimento. Trata-se do trabalho proposto por Marx (1844; 2004), crio, e em minha criação me transformo.

Mas, o trabalho de imersão, como todo trabalho, é contraditório, doloroso. Criar nos coloca em uma posição difícil, na posição de um sujeito que deseja e que realiza, de criador. Desejo realizado liberta, mas ao mesmo tempo amedrontar. Talvez Nietzsche estivesse certo em suas colocações, há um desejo de submissão em nós. Esse é o caminho mais fácil. Esse é nosso lugar comum. E é isso que nos anestesia, nos adormece na experiência da vida líquida.

A imersão tem me auxiliado a enxergar, ainda que minimamente, minha experiência na vida precária e incerta, minhas contradições, meu desejo de liberdade e de submissão. A mobilidade tem me proporcionado um encontro com uma outra forma de vida. Diferente, ainda que a mesma.

Deparei-me com a representação de minha vida nas redes sociais, longe de ser minha vida vivida; com o tempo que roubo de mim mesma, vivendo essa vida representada e pouco representativa; me deparei com outros modos de vivenciar o conhecimento, o aprendizado, o afeto, a fé. Acordei para outra possibilidade de viver coletivamente, de viver o território, a cidade, de sentir a violência, de ver o outro, e, nesse processo, acordei para outra possibilidade de olhar pra mim mesma.   

Bem, esse texto foi apenas para demostrar o primeiro desfio que o processo de imersão, oriundo de minha mobilidade no doutoramento, provocou: meu despertar na vida líquida. Agora cabe pensar sobre todas as probabilidades oriundas desse despertar, desse aprendizado, dessa experiência que se faz única. Criar e re-criar, às vezes, exige um certo recomeço, espero aprender alguma coisa nessa parte do caminho.

Termino, esse primeiro texto, deixando ecoar as palavras de Tulipa Ruiz, em sua música “Êfemera”.

“Vou ficar mais um pouquinho
Para ver se eu aprendo alguma coisa nessa parte do caminho
Martelo o tempo pr’eu ficar mais pianinho
Com as coisas que eu gosto e que nunca são efêmeras
E que estão despetaladas, acabadas
Sempre pedem um tipo de recomeço”

Referências:

Dicionário On Line. Disponível em: https://www.dicio.com.br/imersao/

BAUMAN, Zigmunt. Vida Líquida; tradução Carlos Alberto Medeiros. – 2. ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.8

MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos. São Paulo, Boitempo Editorial, 2004 (tradução de Jesus Ranieri)

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