É engraçado como as coisas acontecem e imediatamente me vejo pesando em colocar o sentimento que tive, diante delas, no papel. Não se trata apenas de relatar um fato ou tentar escrever algo reflexivo, minha escrita não é para isso. Penso que seja para tentar eternizar o que tenho vivido em meu processo de imersão, ou, talvez seja, apenas, para buscar um sentido naquilo que faço. Trata-se de fazer da vida (ou buscar nela) um sentido. Senti-la, e, nesse movimento, me sentir. O sentido, ou o sentir, tem sido, para mim, uma busca. Talvez, por isso, eu estude o sentido no trabalho. O texto de hoje expressa essencialmente isso: sentido e trabalho, ou melhor, o sentido que o trabalho dá a vida.
Sempre fui da corrente de pensamento que associa o sentido ao trabalho. Marx (1844; 2009) é um teórico que aponta a centralidade do trabalho na constituição do homem, na formação de sua subjetividade. Sônia Viegas também é uma autora que associa o trabalho ao sentido. Ela trabalha de uma forma quase poética, explicitando que o trabalho é associado à “construção do ser” (1989). Nessa direção, ela explicita que trabalho se refere à “labor”, relativo ao trabalho na lavoura, no campo, ligando-se ao “cultivar”, aludindo a um processo de transformação. Trata-se, nesse aspecto, do que autora chama de “esforço laborioso”, associado diretamente à criatividade e à transformação de si, através da transformação do mundo, da natureza (VIEGAS, 1989).
Quando lemos uma definição como essa, muitas vezes nos deparamos com um sentimento de utopia, algo que, efetivamente, na organização atual da sociedade contemporânea, é difícil de se vivenciar, ainda mais em tempos de lama. Diante disso, quero compartilhar duas experiências que tive, enquanto possibilidade de resistência ao que nos é, cotidianamente, imposto. Experiências vividas no Alentejo, umas das regiões magníficas de Portugal.
A primeira experiência foi em uma aldeia cuja a vida (e o sentido) gira em torno do trabalho manual com a argila. A segunda, foi em uma quinta de produção de azeite, onde pude perceber o real significado da expressão (que denomina o azeite) “Amor é cego”.
A natureza transformada: mãos que imergem no barro
Foto minha
Quatro de janeiro de 2019. Estou em Évora. Acordo cedo para descobrir os encantos de uma cidade surpreendente, rumo a um castelo um pouco distante. No meio do caminho, passo por uma pequena aldeia chamada São Pedro do Corval. Por ser um lugarejo pequeno, dá pra ver que os habitantes vivem em torno da produção da cerâmica, muito comercializada em Évora. Paro para olhar um pouco a produção.
O chão era de terra. Logo na entrada, me deparo com uma estátua de um senhor trabalhando o barro. Contraditoriamente, havia vida naquela estátua. Ela era da cor da terra, cor de barro, se misturava com a paisagem seca da cidade.
Havia duas casas nessa parte do terreno. Uma delas era de tijolos crus, nascia do chão como se sempre estivesse ali. A outra era branca, com um grande rodapé azul, como todas as casas em Évora. Mais tarde descubro que tinha um sentido naquilo, a temperatura desértica da cidade explicava. O azul correspondia à determinada região de Portugal. As grandes mesas do quintal, cobertas por cerâmicas, também faziam parte da paisagem. Eram pratos e vasos, objetos que esperavam ser vistos por alguém que ali passasse. A porta da casa branca estava aberta. Ao lado, tinha um banner com os seguintes escritos: “Olaria Patalim: Poterry, workshop, museu”.
Com esses dizeres, percebo que poderia entrar sem bater. Entro devagar. Era um galpão grande, muito grande mesmo. Ao lado direito, meus olhos se deparam com uma imensa quantidade de peças acabadas. Elas eram realmente lindas. As cores se misturavam à cor marrom do chão e das paredes. O contraste era o destaque da paisagem.
Ao lado esquerdo, vejo pessoas trabalhando. Aproximo-me de um senhor que trabalhava o barro, delicadamente. Era Joaquim. Ele finalizava uma jarra, ou seria um corpo de uma mulher? Penso nessas duas possibilidades. A arte tem dessas coisas, atinge nossa diversidade imaginária. Em meu pensamento, a mulher usava uma saia longa, bem rodada, as mãos estavam na cintura, a cabeça, vazia. Poderia ser a representação da mulher, mas era somente uma jarra preste a ser finalizada: uma jarra de mulher. A imagem que eu via, o homem trabalhando o barro, era a mesma imagem da estátua do lado de fora. Um retrato moderno do passado. Uma cena que se repetia na temporalidade do mundo do trabalho.
Na mesa ao lado, havia um homem dando os primeiros contornos ao barro. Era Rui. O único maquinário que tinha no local era uma daquelas peças giratórias. Enquanto ela girava, Rui dava forma ao prato. Suas mãos, docemente, pressionavam uma das partes, firmemente. O prato se constituía nessa contradição. A concentração o impedia de ver que estava sendo observado. Era quase um nascimento. Naquele momento, entendi porque no filme “Ghost: do outro lado da vida”, a atriz mexia com argila antes de uma das cenas de amor (ou de sexo) mais lindas retratada no cinema. A arte imita a vida, mesmo que despretensiosamente.
Do outro lado, uma senhora finalizava os pratos. Era Regina. Muitas cores sobre a mesa, em forma de tinta. Ela, sutilmente, molhava o pincel e o deslizava sobre o prato. Era a roupa do recém-nascido, lindamente colocada de forma criativa, da forma como ela quisesse, naquele momento. Ela estava ali, no momento e no prato, representada.
Ando por mais uns minutos no galpão. A visão era marcante, contraditória, se transformava a cada passo, a cada olhar. Era a natureza bruta e transformada num mesmo espaço de tempo, em um mesmo lugar.
As cerâmicas expressavam infinitas possibilidades. Cada um poderia se ligar a elas pela cor, pela firmeza do traço, pelo borrado, propositalmente, construído. Ao conversar com os trabalhadores, eles falam que esse trabalho é passado de geração para geração, evitando que a tradição em olaria termine.
Ao final da minha visita, pego quatro potes coloridos. Cada um representando algo que vi naquele lugar. Penso na relação entre preço e valor. Aquilo tinha um preço, era mensurável. Mas o valor era imensurável. Aqueles potes representavam o Joaquim, o Rui, a Regina e muitas tantas outras pessoas que fizeram e fazem parte dessa história. Atrás daqueles produtos haviam homens, mulheres, subjetividades repletas de sentido. Era a vida que se mantinha e, ao mesmo tempo, se transformava através da produção manual, através do trabalho repleto de sentido.
A visão de amor do azeite “Amor é cego”
A segunda experiência laboral, forma de resistência, aconteceu no dia seguinte. É cinco de janeiro de 2019, ainda em Évora. Acordo cedo, animada com a programação do dia. Por uma obra do destino, tipo aquelas propagandas que aparecem ao lado na tela do nosso computador, comprei um passeio para conhecer uma quinta de produção de azeite, faríamos degustação do azeite cujo nome me parecia um pouco estranho, além de muito peculiar: “Amor é cego”. Nome esquisito para um azeite, pensei eu, mas como uma boa usuária, quase uma viciada, estava realmente animada com a experiência. Eu teria a chance de vivenciar a vida cotidiana daqueles que moram na cidade, pessoas comuns, pequenos produtores, grandes trabalhadores. Ainda estava anestesiada com o que tinha vivido na olaria, no dia anterior, sem imaginar que poderia vivenciar algo parecido novamente. Erro meu.
As 11 horas, estava eu à porta do hotel, quando um homem, que aparentava uns 45 anos vem em minha direção. Ele me aborda perguntando se eu era Danielle. Balanço a cabeça positivamente e pergunto: “Você é o João, certo?”. Ele responde que sim. Após os cumprimentos iniciais, partimos rumo à quinta.
Já no carro, nas primeiras conversas, percebo que iria encontrar algo diferente ali. Seria eu surpreendida novamente? Aquela conversa batia em meus ouvidos como uma delicada melodia sobre o mundo do trabalho, sobre sentido. Passado e presente se misturavam numa singela tradição. Tradição, esta, que se manifestava num trabalho artesanal, realizado numa quinta de azeite, num olival tradicional que passava de um avô à um neto.
Começo a prestar muita atenção naquilo que João dizia:
“Bem, o objetivo dessa visita é tentar apresentar como é o processo artesanal de produção de azeite, é levar as pessoas a conhecerem um processo que, às vezes, escapa. Trata-se de uma tentativa de humanizar um produto que se compra no supermercado. Muitas pessoas não imaginam como é feito aquilo que se pega na prateleira”.
Imediatamente, eu penso: “Acho que ninguém imagina”. Realmente não conseguimos mensurar como são feitos os produtos que compramos, não pensamos em como eles são produzidos, e nem imaginamos que, atrás daqueles produtos, existem pessoas, trabalhadores que, por vezes, criam, por vezes, são explorados.
Chegamos ao local. Eu mal podia acreditar no que via. A primeira coisa que me chamou a atenção foi uma cerca que separava duas realidades distintas. Um lado era composto por árvores baixas, plantadas bem perto umas das outras. Dava pra ver que existia um sistema potente de irrigação ali. Não havia flores nesse lado da cerca. O outro lado, era repleto de oliveiras que pareciam mais velhas. Estavam ordenadas de forma diferente, sendo que, entre uma e outra, sempre havia espaço para uma pequena desordem, uma árvore sorrateira fora do padrão pré-estabelecido. A natureza é assim, tem dessas coisas. Os troncos eram largos, muito largos, firmes. Não havia um sistema de irrigação, como do outro lado da cerca. O chão era coberto por um tapete verde, repleto de pequenas flores amarelas. O verde e o amarelo se misturavam, e nessa mistura, dançavam na brisa suave e fria do inverno alentejano. O sol estava ao fundo, iluminando todo aquele lugar.
A cena era um tanto contraditória. Duas realidades diferentes, separada por uma pequena cerca. Por um minuto, lembro-me do livro de Richard Sennett (1998), A Corrosão do Caráter. Penso na diferença entre as duas padarias, muito bem relatada por ele, no livro. Imagino que, aquilo que eu via na prática, era, exatamente, a contradição que existia entre as duas padarias, era a contradição entre a temporalidade do fazer, do labor, do transformar a natureza. A cerca era a divisão entre o sentido do trabalho, em seus aspectos filosófico e antropológico, e trabalho alienado, financiado e financiador do capital na sociedade contemporânea. Não fiz um julgamento do mérito, naquele momento, pois as pessoas precisam de dinheiro. Era justo pensar na superprodução, na lucratividade. Mas a contradição se fazia presente, concreta diante meus olhos.
Era muito pensamento que vinha em minha cabeça, quando João continua sua exposição.
“- Essa história começa há 75 anos atrás, quando meu avô compra essa quinta. É uma quinta relativamente pequena, hoje com duzentas e trinta e uma oliveiras. Inicialmente, meu avô queria arrancar todas as oliveiras, para plantar novas. Mas, algumas ele não conseguiu arrancar. Portanto, temos aqui as que foram plantadas por ele e algumas que resistiram a ele, pois tinham muitas rochas próximas a suas raízes. A história mais fantástica dessa oliveira aqui, por exemplo, não é a idade dela, mas o fato dela ter sobrevivido ao meu avô”. Nesse momento, João sorri, com um sorriso de amor.
E assim, João conta detalhadamente a história de seu avô. Ele relata a história de cada árvore, de cada local daquela quinta.
“- Quando meu avô morreu, há cinco anos, começamos a cuidar do olival, reformamos a casa, que era quase um armazém agrícola. Vimos que para manter isso aqui, precisaríamos de fazer algo diferente. Aí pensamos em fazer azeite. Pelo menos sabíamos que daria para manter o local”.
Pergunto sobre o processo de colheita e de produção do azeite.
“- Meu avô não fazia azeite, ele apenas vendia as azeitonas. Comparado com o meu avô, ele fazia duas coisas diferente do que nós fazemos agora. A primeira coisa é o ‘como ele colhia a azeitona’. O que ele fazia? Ele colocava um pano embaixo da oliveira e com um pau de maneira ele batia na árvore. Ele conseguia colher, mas isso era um problema. O que acontecia? Ao batê-la, ele quebrava os galhos da oliveira. E, ao partir os ramos, partia os galhos onde, no ano seguinte, estariam as novas azeitonas. Ou seja, era aquilo que chamamos o ano de safra, com muitas azeitonas, e o ano posterior era sempre a contra-safra, não havia nada. Assim, tivemos que mudar essa forma de colher. Temos que colher a azeitona sem partir, sem danificar, os ramos. Existem, hoje, umas máquinas que agarram no tronco, vibrando-o. Mas, aqui, não fazem nada, como os troncos são muito grandes, não acontece nada. Então, o que nós fazemos? Existe uma outra máquina que penteia a árvore, e assim a azeitona cai no pano. E um aparelho manual. É assim que colhemos, manualmente. É como se fosse um pente de pentear árvores. A outra grande diferença é que meu avô colhia a azeitona madura. A azeitona madura tem mais azeite lá dentro. Nós não deixamos a azeitona ficar madura. Colhemos verde. Assim evitamos a mosca da azeitona. Além disso, o azeite feito de azeitona verde é completamente diferente. Ele é suave, quase doce, mas quando você prova, o azeite é picante na garganta”.
Depois dessa descrição, João nos convida e degustar o azeite produzido por ele.
Sentamos em um alpendre bem em frente ao olival. A mesa era de madeira. João sai para buscar o material da degustação. Volta com pequenos copos azuis em uma bandeja, um vidro do azeite Amor é cego, pão picado, água e vinho. Delicadamente, ele colocou o azeite em um recipiente branco. Era um azeite amarelo, quase dourado. Sem conhecer o gosto, eu sabia que era único.
Pego um pedaço de pão e coloco no recipiente com azeite. Provo. O pão e o azeite se misturavam em minha boca, tinha gosto de casa. Não sei se casa tem gosto, mas era um sabor acolhedor. Talvez, tivesse gosto de lar.
Partimos para a prova do azeite, propriamente dita. Ele coloca o azeite em um pequeno copo azul. A cor do copo me surpreende, pois ofuscava o dourado do azeite. João explica que isso é utilizado pois a cor do azeite não é um fator importante, principalmente nos concursos de azeite, mas, exclusivamente o sabor. Ele explica como se prova o azeite. Coloca-o na boca, puxa-se um pouco de ar e, em seguida, engole. Faço o procedimento como se fosse um ritual. O azeite era doce, suave, delicado e, ao mesmo tempo, forte, presente, marcante. Acho que tinha gosto de felicidade. Ao final, sinto o picante na garganta. Não incomoda, acomoda.
Extasiada com aquele ritual, pergunto a João o porquê do nome, e ele responde com seu sorriso de amor:
“- Queríamos fazer um azeite com muita, muita qualidade. Mas percebemos que para ter um produto bom, além da qualidade, que é muito importante, a gente precisava de uma imagem. Então convidamos uma designer de Lisboa que trabalha com rótulos de vinhos. Convidamos para ela vir aqui, conhecer e ver se poderia fazer o rotulo da nossa garrafa. Ela veio. Então apresentamos o que queríamos fazer, com isso que temos aqui, com o que vocês viram. E, no final, depois de ouvir tudo isso, ela volta-se pra nós e diz assim: ‘- Então, eu vou ajudá-los, mas, como se chama o azeite?’ E eu olho para minha mulher, ela olha pra mim meio espantada, pois, nem se quer tínhamos pensado nisso. Então ela vira pra nós e diz: ‘- Vocês têm duas opções, a primeira é ‘nós somos muitos loucos’, pois queremos fazer azeite com 231 oliveiras, ou então vocês podem chamá-lo de ‘Amor é cego’, pois somente gostando muito disso aqui pra fazer uma coisa louca dessa. Lançar uma marca de azeite com duzentas e poucas oliveiras não cabe na cabeça de ninguém’. Assim surgiu o nome. Ficou o nome pela loucura”.
Depois dessa explicação, eu não tinha mais como questionar o nome. Sim, ele era o nome do azeite, havia sentido ali.
Depois da degustação fomos almoçar. O almoço havia sido preparado pela esposa de João. A mesa estava linda. Tomates e cebolas se misturavam aos queijos, fiambres, chouriços, pães e geleias. O azeite era um espetáculo à parte. Infinidade de sabores, sentidos descobertos, gostos alentejanos.
Saio dali tocada com o que meus sentidos me proporcionaram naquele dia e com algumas garrafas do azeite “Amor é cego”, é claro. Penso no mundo do trabalho contemporâneo e como nos dois exemplos os trabalhadores optaram em manter a produção artesanal. Era uma forma de resistência. Resistência que se ancorava na tradição. O sentido estava ali, na realização diária, na produção de algo próprio, na transformação da terra, do barro em pratos, copos e jarras, da azeitona ao azeite. Transformando a natureza, eles se transformavam e, nisso, encontravam, um sentido para a vida. Trabalho e sentido se misturaram e se tornaram concretos, em uma olaria e em um olival. Imersão também é isso, é poder vivenciar outras formas de transformar a natureza e a si próprio. É tentar mergulhar no sentido das coisas. É encontrar formas de fugir da lama. É sentir. Resistir.